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Apesar da guerra, deseja férias na Rússia? Perrengues são viagem no tempo

Turistas na Praça Vermelha de Moscou, na Rússia Imagem: Alexander NEMENOV / AFP

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

04/10/2025 05h30

Imagine o seguinte cenário. A Rússia invade a Ucrânia e, ainda assim, vê seu turismo crescer e, além disso, sedia grandes eventos esportivos sem boicote generalizado e com a participação de potências do Ocidente.

Parece realidade paralela. Mas aconteceu não muito tempo atrás, há pouco mais de dez anos.

Entre 2010 e 2014, segundo o Banco Mundial, 27 milhões de turistas estrangeiros visitaram o país em média, gerando uma receita de cerca de US$ 10 bilhões (cerca de R$ 53 bilhões). Em 2013, a Rússia foi o nono país mais visitado do mundo.

Em 2014, ela invadiu a Ucrânia. Em 2022, invadiu de novo, e as maneiras diferentes como o mundo reagiu aos dois episódios explicam o isolamento atual do país.

O turismo despencou, mas não morreu. O setor se adaptou, e quem vai à Rússia hoje tem uma experiência bem diferente daquela vivenciada na década passada.

A invasão da Crimeia

Em 2014, Moscou invadiu e anexou a Crimeia, que pertencia à Ucrânia, alegando que os russos que viviam naquela península estavam sendo ameaçados por Kiev. O Ocidente reagiu, basicamente, com sanções econômicas.

Prova de snowboard nas Olimpíadas de Inverno, em Sochi, na Rússia, em 2014 Imagem: AFP PHOTO / JAVIER SORIANO

Essa resposta, considerada fraca por analistas internacionais, "levou a uma percepção, na Rússia, de que ela poderia ir mais longe sem consequências". É o que explica Stephen Hall, pesquisador da Universidade de Bath, no Reino Unido, especializado nas relações internacionais da Rússia.

A invasão aconteceu apenas dias depois do encerramento das Olimpíadas de Inverno, realizadas em Sochi, balneário russo às margens do Mar Negro. Nos meses e anos seguintes, o conflito que se seguiu no leste da Ucrânia não impediu nem trouxe impactos significativos à Copa do Mundo, realizada em 2018 na Rússia.

O turismo seguiu bem. Em 2019, último ano pré-pandemia, foram 24 milhões de visitantes internacionais.

Cossacos recebem instruções de patrulha em Volgogrado, em 2014 Imagem: REUTERS/Vasily Fedosenko

A invasão da Ucrânia e o impacto no turismo

Em 2022, Vladimir Putin voltou a invadir a Ucrânia, que reagiu e impediu aquilo que muitos viam como uma conquista fácil e humilhante. A reação internacional foi bem diferente da de 2014, com sanções muito mais pesadas e ajuda militar aos ucranianos.

Desde então, os dois países estão em guerra, criando o maior conflito europeu desde 1945. O impacto na economia do turismo foi tremendo, e o número de estrangeiros na Rússia despencou 96% em 2022, caindo para meros 200 mil pessoas.

Previsão de voos durante ataque ucraniano no aeroporto de Moscou Imagem: REUTERS/Stringer

Os países da Europa impuseram tantas restrições que hoje é impossível chegar à Rússia a partir de um aeroporto da União Europeia. Diversos governos classificam a Rússia como um destino não recomendável para viagem.

"Aplicação arbitrária de leis locais" e "risco de assédio ou detenção indevida por autoridades de segurança russas" são alguns dos alertas emitidos por consulados. Isso não parte apenas de repartições alemãs, francesas, britânicas ou americanas, mas até de países mais próximos de Putin, como Hungria e Sérvia.

Ainda assim, a Sérvia é dos poucos que mantêm voos diretos para Moscou. Mas a passagem a partir de Belgrado é cara. A melhor opção tende a ser via Istambul.

Turistas chineses ao lado das tradicionais matryoshkas russas, em Moscou Imagem: Alexander NEMENOV / AFP

Isso para turistas do Ocidente, que rarearam. Porque, na prática, o que aconteceu foi um aumento de viajantes de outras regiões, que chegam ao país via Ásia Central, China ou Índia. O novo fluxo acabou mudando o turismo na Rússia, que passou a receber mais chineses e indianos, segundo a revista "The Diplomatic Insight".

Além disso, a desvalorização do rublo e as sanções internacionais mudaram também o turismo local. Companhias aéreas do país tiveram que mudar rotas e os russos passaram a viajar mais para destinos nacionais.

"No primeiro ano após o início da guerra, a capacidade de assentos entre a Rússia e o Oriente Médio cresceu 27% em relação ao período pré-pandemia. Para a Turquia, subiu 26%", informa o Fórum Mundial de Turismo.

Os perrengues de ir para a Rússia hoje

Turista posa entre figuras de Vladimir Putin e Xi Jinping Imagem: Alexander NEMENOV / AFP

Não foram só as rotas aéreas que mudaram. Cruzar as fronteiras terrestres também é muito mais difícil. Pela Finlândia, antes uma rota popular para quem ia a São Petersburgo, não dá mais. A longa fronteira finlandesa está bloqueada.

"O confortável trem Alegro, que fazia o trajeto entre Helsinque e São Petersburgo em apenas três horas e meia, foi enviado para o ferro-velho pelos finlandeses", explica o historiador Rodrigo Ianhez, sócio da agência de viagens Estrela Vermelha, especializada em roteiros para países ligados ao antigo bloco socialista.

"Eles romperam a parceria que tinham com a RZhD, maior companhia ferroviária russa."

Fronteiras terrestres menos populares, como as da Estônia e Letônia, também podem fechar a qualquer momento, explica Ianhez. Isso limita ainda mais quem deseja ir à Rússia.

"Partindo do Brasil, as opções de companhias aéreas estão reduzidas a Emirates, Qatar, Turkish e, com voos menos regulares, Ethiopian e Royal Air Maroc", diz. E esse é só o primeiro desafio.

As sanções impostas ao país impactam qualquer viajante estrangeiro que desembarque em Moscou. Quer usar cartão de crédito? Esqueça, pois Visa e Mastercard não funcionam lá, só as bandeiras Mir (russa) e UnionPay (chinesa).

Adolescentes posam para fotos em Moscou Imagem: Alexander NEMENOV / AFP

Viajantes de países que não fazem parte da União Europeia podem levar até US$ 10 mil em espécie sem declarar. Para os europeus é mais complexo, pois a UE baniu o transporte de notas de euro para a Rússia.

"Tal situação gera uma série de inconvenientes", diz Ianhez. "O viajante não conseguirá pagar pela reserva de hotéis online, ou mesmo adquirir passagens internas de trem ou de avião."

Além de ter que levar o dinheiro em espécie (dólar ou euro), é preciso calcular bem, pois não será possível fazer saques nem transferências. A experiência acaba sendo uma viagem no tempo, brinca o guia de turismo:

É como viajar aos anos 1990, mas sem a antiquada conveniência dos traveller's checks. Os mais jovens nem devem nem saber do que se trata, mas esse meio de pagamento servia justamente para transportar somas de dinheiro com segurança durante as viagens, em uma época em que cartões de crédito internacionais eram incomuns.

Ele conta que de uns tempos para cá outro problema cresceu. Comprar um chip de celular virou um pesadelo burocrático que dura pelo menos cinco dias e pode exigir até a tradução do passaporte.

Ianhez diz que já presenciou alguns perrengues vividos por turistas desavisados. "Qual não foi minha surpresa, ao receber em Moscou um grupo de brasileiros, ao descobrir que um dos viajantes havia trazido um total de apenas R$ 200 para uma viagem de duas semanas?"

Somente a solidariedade dos companheiros de viagem pôde salvá-lo. Emprestaram dinheiro vivo ao turista perdido, que devolveu por meio de transferências por PIX nas contas brasileiras.

Mesmo isso não é fácil, porque para entrar na internet é preciso usar VPN. Ou seja, sem esse recurso que disfarça a localização do usuário, não dá para entrar em aplicativos de bancos nem usar qualquer outro serviço online.

Pelo menos é tudo dentro da lei. "Ao contrário do que muitos pensam, esse expediente não apenas é legal na Rússia, como amplamente utilizado", explica Ianhez.

Há segurança para o turismo?

Palácios, igrejas e museus sempre foram os grandes destaques do turismo cultural na Rússia. A atual guerra com a Ucrânia e o reforçado nacionalismo russo introduziram novas atrações nos museus militares.

Ianhez conta que houve, nos últimos tempos, exibições temporárias de troféus de guerra: bandeiras e estandartes de unidades de elite ucranianas, como o batalhão Azov, armamentos capturados ao longo das operações militares e até carcaças de tanques Leopard, da Alemanha, e Abrams, dos Estados Unidos.

Segundo ele, essas "exibições inesperadas", além da propaganda de guerra espalhada no interior do país, são os únicos sinais de que existe um conflito armado em curso.

Por mais estranho que possa parecer, a economia russa não aparenta passar por dificuldades, diz.

Shopping em Moscou Imagem: REUTERS/Maxim Shemetov/File Photo

O fato de a Rússia ser um país continental facilita, nesse caso, a vida do viajante. Os conflitos estão muito longe das regiões turísticas. O guia lembra o caso do filho de um viajante brasileiro que, alarmado com as notícias sobre um "terremoto na Rússia", ligou para o pai em plena madrugada para saber como ele estava.

Só que o tremor aconteceu em Kamchatka. "Dificilmente ameaçaria alguém descansando a mais de 6,5 mil quilômetros de distância, em São Petersburgo", diz.

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