'Jeffim' Rueda: 'Cheguei a São Paulo com R$ 30 no bolso e queria boteco'

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Quem senta à mesa com Jefferson Rueda ou em sua boqueta n'A Casa do Porco já sabe: vem comida boa, uma dose de cachaça e uma prosa que poderia virar o dia.
Aos 47 anos, com menu novo e pronto para a estreia de "Chef de Alto Nível" (Globo), relembra sua história a Nossa, numa espécie de "catarse caipira".
O gosto pelo porco vem de longe, lá da infância em São José do Rio Pardo, onde a família Rueda se reunia ao redor da mesa em todos os finais de semana.
Um matava o porco, outro trazia pamonha, a tia que fazia rosca, outra que assava o pernil. Aí tirava o café, vinha o almoço, tirava o almoço, vinha café, tirava café, vinha jantar. Domingão, quando todo mundo ia embora, cada um levava um pouco do que sobrava... era a Festa de Babette a casa da vó, descreve a primeira memória.

Já o amor pela cozinha veio do pai, que tinha a pesca, a horta da casa e a boemia como terapias. Aos 7 anos, 'Jeffim' (para os íntimos) pediu que ele o ensinasse a fazer arroz. E dali surgiam primeiras lições (e frustrações) na cozinha.
"Ele me disse que quando eu percebesse que tava muito salgado, para picar uma batata e jogar no arroz. Mas teve um dia que eu tava com pressa, fiz assim [cerra o punho meio aberto] de sal e fui pondo batata, batata, batata. O negócio ferveu e terminou um purê com arroz", gargalha.
Depois do arroz, o feijão e a mistura. "Eu com 13 anos, meu pai já não cozinhava mais em casa. Eu roubei o posto".
E não só em casa: Jeffinho também começava a fazer parte dos festejos da cidade, casamentos, quermesses, churrascos, leilões da paróquia - num deles seu pai chegou a arrematar duas centenas de galinhas, para desespero da mãe, conta.
"Chega a chocar, o que é velho e bom"*
Sem vontade de estudar e sem distrações ("até os 16, eu nem sabia que era mulher, só gostava de pescar"), foi trabalhar em um açougue ("se não tivesse ido embora, tava lá até hoje) e surgia a resposta para "o que você vai fazer da sua vida?".
Para frustração do pai que queria um doutor, Jeffinho se interessou pelo até então novíssimo curso de Cozinheiro Chefe Internacional, no Senac, em Águas de São Pedro.

Era tão sem noção que minha ideia era montar um boteco. Pensava que ia aprender um arroz mais gostos, um feijão diferente e voltaria.
Contrariado, mas conformado, o pai separara um canto do terreno, com blocos de concreto, para quando o chef Jefferson voltasse a Rio Pardo.
Mas, as mães sabem mais.
"Meus pais me deixaram no Senac e na hora que a minha mãe passou pelo portão do campus, ela começou a chorar de soluçar e disse 'você não volta nunca mais pra casa'. E eu não voltei".
Durante o curso, que levou dois anos, muita gastronomia francesa na cabeça. Aos poucos, Jeffinho sabia que o confit de pato não teria espaço em uma culinária regada a banha de porco.
Aí foi andando a coisa, comecei a ver a dimensão do B.O. que eu tinha arrumado pra minha cabeça, que não tinha mais como voltar pra Rio Pardo mesmo.
"Se eles são demais, isso eu nunca vi"*
Já no rumo para o estágio de seis meses na cozinha de algum de seus professores (de Emmanuel Bassoleil a Christophe Besse), Rueda se apaixonou por Laurent Suaudeau.
"Lembro de ver ele num comercial de maionese, quando ainda cozinhava em casa, e falar pra minha mãe 'um dia vou cozinhar como ele'", conta.
Com ajuda do colega de Senac Paulo Barros, se estabeleceu em São Paulo e para um estágio com o "chef dos chefs" francês, mas também ajudaria o amigo de curso no Roma Jardins, restaurante do pai de Paulo. "Cheguei de carona com R$ 30 no bolso e, Nerso da Capetinga que sou, me perdi pra chegar na casa do Paulo", recorda.
Olha os pensamentos. Eu achava que se ficasse trabalhando 8 horas por dia, calculava que em uns 20 anos já teria meu nome no dólmã.
Com lenço "amarradinho no pescoço" e seu sapato Vulcabras, em 1997, Jeffinho ficava das 8 às 16h no Laurent e ajudava o Paulo o resto do tempo.
O combinado era que quando acabasse seu estágio, ficaria no Roma com o amigo. Destacado, porém, foi convocado por Laurent a ficar. Mas Jeffinho negou e cumpriu o que prometera no fio do bigode.
Após mais de um ano suando com o colega no Roma, decidiram partir para a França e pediram recomendação de Laurent. Para Paulo, a carta saiu na hora. Para Jefferson, o mestre francês impôs uma condição: se quisesse ir, teria que trabalhar com Laurent por dois anos.
Na época, 1998, Laurent comandava a ala francesa do novíssimo Parigi, enquanto Luciano Boseggia, chef de cozinha do Fasano, comandava a parte italiana. E foi "nessa brigaiada" que Jeffinho entrou.
De um lado, a elegância e excelência francesa. Do outro, a agilidade anárquica e saborosa italiana. "Era um inferno", descreve.
Com Laurent em temporada de meses na França e sob o comando do chef Milton Schneider, Jeffinho cansou de ser "fervido", largou o emprego ("Laurent queria me matar") e voltou para o Roma. E teve mais uma proposta de Laurent, agora no Cantaloup. Não sem antes ameaçar: se Jefferson não ficasse pelo menos um ano, que nunca mais o procurasse.
Contando os meses para conseguir finalmente uma recomendação para fora do país, Jeffinho cortou um dobrado, mas resistiu, atraiu Paulo, que voltara da França, para o novo restaurante, e ainda ajudava o amigo Rodrigo Martins nas noites do bombado Restaurante Brooklyn.
A dupla do Cantaloup chamaria a atenção de um chef que abriria um novo negócio em Miami. A proposta era casa, comida, roupa lavada e US$ 8 mil para cada um. Irrecusável.
Pedimos as contas, Laurent xingou a gente pra caramba. Aí eu já comecei a me desfazer das coisas, fiz uma festa dentro da minha república, dei tudo o que eu tinha. Enchi o latão e fui embora para Rio Pardo. Daí precisava tirar o visto. Adivinha? Preciso nem falar, né? Paulo foi e eu fiquei.
"Quem sabe ornar, agindo pela emoção"*
Seis meses depois, em uma nova tentativa e vivendo de bicos, teve seu visto negado mais uma vez. Desistiu e hoje vê que ter ficado no Brasil trouxe vantagens, ainda que tenha feito estágios nos consagrados El Celler Can Roca, Can Fabes, Santi Santamaria, na Europa.
"Muitos que foram embora e trilharam um caminho legal lá fora, na hora que voltam pro Brasil tiveram que começar do zero aqui. Eu abri um caminho, uma trincheira nesse mercado", avalia.

De Brooklyn ao Sam & Brothers, depois Madelleine e Pomodori, Jeffinho também estava nos disputados concursos, sempre chamado por Suaudeau.
Por três anos, participou do Fispal Gourmet Show, presidido por Laurent. O primeiro ajudando um amigo, no segundo como participante - em que após muito treino, ficou no 3° lugar que ainda considera injusto —, no terceiro, "tinha desencanado, tava revoltado. E ganhei".
Para o Bocuse D'Or, considerada a Copa do Mundo dos chefs, foi um pulo e acabou ficando em 19º lugar na competição.
Chef revelação e agora dono de restaurante, Jeffinho e Rodrigo Martins planejaram o Pomodori como trattoria, mas com apenas 24 lugares, virou um "bistrô italiano".
Com 20 e poucos anos eu já concorria ao título de melhor restaurante italiano, disputando com o Fasano, cara.

Com o fim do Pomodori, que explodiu, tentou ampliar e se perdeu nas contas, surgiu o Attimo, do restaurateur Marcelo Fernandes, onde Rueda ficou de 2012 a 2015.
Foi lá que cheguei no ápice da minha carreira, com 50 Best da América Latina em 2013 e 2014, uma estrela Michelin. Só que ali também chegou uma hora que eu não estava mais feliz. E eu vou muito pelo meu coração em tudo que eu faço.
"Preciso dessas coisas pra viver melhor? Não sei, não mais"*
Na época, Jeffinho montava com a hoje ex-mulher (a também chef Janaína Torres), o Dona Onça. A rotina de ida e volta e madrugadas do centro para a Vila Nova Conceição, com filhos pequenos, começava a incomodar.
Também por aí, o chef começava a mostrar ao mundo seu porco San Zé (Porco inteiro assado lentamente de 6 a 8 horas), uma evolução do porco à paraguaia que fazia a alegria no Natal em Rio Pardo.

Até Ferràn Adriá, da terra do porco preto, "comeu, enlouqueceu e me disse que eu precisava 'abrir uma portinha'". Luiz Américo Camaro, ex-crítico e hoje padeiro, fez coro ao provar o sanduíche de porco ofertado em uma Virada Cultural.
Toda vez que eu cruzava, o Luiz Américo, ele falava: 'Jeffinho, é a coisa mais linda que você faz, coisa popular'. E aí eu falei, 'vou montar essa portinha'.
"Anda logo, então, aceita, sim ou não? Um jeca fino, assim"*
Convicto de estar no degradado centro de São Paulo, transformou a esquina abandonada em um restaurante após um ano e meio de obras. Um mês antes da abertura, saiu o cardápio.

"A gente fez um soft opening aqui de quase dois meses que parava a cidade. Foi aí que realmente eu comecei a minha história de verdade, sabe? De fazer realmente aquilo que o meu coração falava. E aqui eu acho que tem mais a ver com o interior", conta.
Quase na hora da casa abrir, às 12 horas, o chef conta que a casa faz aniversário no 12 de outubro e assim se deu um causo do devoto de Nossa Senhora.
Decidimos abrir no feriado prolongado, pra ser uma coisa mais tranquila, mas já deu fila no primeiro dia, 10 minutos entrou umas 200 mil comandas, aquela 'nadação' do cão. Do meio-dia à meia-noite. Aí, de repente, vejo uns clientes passando dentro da cozinha. Não pegou fogo aqui no prédio da frente? Aí bombeiro mandou fechar o restaurante e os clientes estavam saindo. Tive que fechar o restaurante às seis da tarde. Só eu sei o tanto que eu agradeci.
Em 10 anos de história, o chef considera que fez de tudo com a carne de porco e isso se traduz no menu atual, batizado de Porco D.O.C. ("Denominação de Origem...Caipira"), a degustação Porco D.O.C. (Menu: R$ 320 | Harmonização: R$ 295 ou R$ 550).

Há suspiro de porco cru, pizza com linguiça curada, peixe fresco confitado na banha de porco, hambúrguer de cabeça de porco acompanhado de milkshake de porco com leite defumado e doce de leite, e, claro, o clássico Porco San Zé.
"Não sou um bicho do mato, mas sou um homem que não vira lobisomem"*
Hoje 83° melhor restaurante do mundo e o 15º da América Latina, segundo o The World's 50 Best Restaurants, e Estrela Verde no Guia Michelin, A Casa do Porco quer olhar para dentro e melhorar o que já faz sucesso. E espelha essa nova consciência também com uma revolução pessoal.
Mudei muito de 5 anos pra cá. Essa vida louca de restaurante não vai mudar, mas hoje, na hora que começa a pegar pro meu lado, vou atrás do meu refúgio. O que que adianta construir um império, só olhar pra ele e não ter sentido nenhum?, diz.

Em 2020, quando adquiriu um sítio em sua cidade-natal e certificou-se agricultor, pensou em parar e não voltar, mas o retorno veio também com um olhar para as pessoas que fazem A Casa do Porco.
"Quero conseguir entender os problemas deles, pelo que já passei também. Quero que a minha gerente seja mais humanista, que cuide dos meus funcionários. Essa vida é curta demais pra gente ficar pirando. Eu não piro mais."
"Hoje eu sei que eu sou bipolar, tenho déficit de atenção, tenho milhões de coisas. E que no decorrer da vida, a gente sempre tem aqueles momentos de loucura, de depressão, e não sabe", revela.
Hoje, "Jeffim" se considera um homem diferente. A vida noturna foi substituída pelo horário das galinhas - dorme 22h, acorda 5h "com a cabeça trincando". Os amigos? Só os de verdade. Bichos? Vários ("eles parecem que tiram as coisas ruins da gente"). Plantas? Muitas.

Feliz? "Extremamente", enfatiza.
Não quero mais só trazer o porco e as verduras. Quero trazer um pouco dessa paz do interior.
*N'A Casa do Porco, reina a moda de viola, mas estes intertítulos foram "roubados" do rock "Nova Onda Caipira", da banda Charme Chulo.
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