Do Cynar ao Jurubeba, 'bebidas de boteco' têm redenção nos bares modernos

"Aiiihhhnnnn, Cynar?! Mas não é bebida de boteco?".Volta e meia ouço interjeições esquisitas e enfrento narizes franzidos quando falo que adoro uma tônica com base de amaro de alcachofra.

Aí toca explicar que bartenders bem bambas dessa e de outras paróquias adoram esse aperitivo, fazem belos coquetéis com ele e os servem nos bares bacanas, aqueles que estão nas listas de melhores do mundo. Muita gente nem se comove.

Mas o planeta gira e estrelas mudam de lugar, como diriam Roberto & Erasmo. Campari já amargou dias inglórios, sabia? Os cringes que lembram da canção sabem: era reconhecido, mui preconceituosamente, como bebida de garota do job.

Hoje todo mundo acha chique pedir Negroni no bar da moda, nem que seja só para se postar nas redes segurando o coquetel vermelhão, bonitão e instagramável, com cabelão voando e cara de quem olha para o nada.

Jurubeba, Paratudo, Conhaque de Alcatrão São João da Barra, Fogo Paulista... também há redenção ou chance de ressignificação para outros clássicos dos balcões de fórmica? O mixologista Diogo Sevilio, chefe executivo dos bares Xepa e Ó Pro Cê Vê, em São Paulo, garante que sim.

Há ótimos produtos classificados como 'bebida de boteco'. Só que o juízo de valor está mais atrelado ao preço e à fama popular do que às suas qualidades sensoriais, diz Diogo, estudioso da cultura de bar do Brasil e incentivador do uso de ingredientes marginalizados na coquetelaria.

Lendo o nosso guia, fica fácil chegar ao próximo boteco hipster (São Paulo está cheio deles) esbanjando conhecimento ao fazer seu pedido. Ou armar, em casa mesmo, uma festinha saborosa e low cost.

Cynar

O italiano Cynar está na categoria dos aperitivos ou amaros, também conhecidos como bitters, bebidas em que ervas, cascas, flores, sementes, frutas, especiarias e outros botânicos são macerados no álcool.

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Cynar
Cynar Imagem: Reprodução/Instagram

Há bitters potáveis, como Cynar e Campari, que podem ser servidos puros. Os não potáveis são superconcentrados e entram como um tempero nos coquetéis, tipo Angostura e Peychaud's.

Diogo simplifica a parada: "Costumo dizer que bitter potável é um licor amargo. O açúcar entra na composição para torná-lo mais palatável". Quem já brincou de beber Angostura pura sabe a diferença.

Cynar tem notas herbais notáveis, pelo uso da alcachofra (opa, seu nome científico é Cynara cardunculus) e de mais de uma dezena de botânicos. Traz toques defumados, terrosos, um quê de café, outro quê achocolatado, e um bom balanço entre o amargor das evas e o dulçor.

A receita da poção é mantida em segredo desde o final dos anos 1940, quando criada pelo empresário Angelo Dalle Molle. Hoje a marca pertence ao Grupo Campari, que fabrica Cynar e seu carro-chefe vermelho no Brasil.

O Cynar básico tem 20% de teor alcoólico. Cynar 70 é uma versão mais potente, com 35% de álcool, importada para o Brasil. Este exemplar mais porreta, segundo Diogo, tem traços herbais e de especiarias mais pronunciados e corpo mais licoroso, devido à maior presença de álcool.

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Investimento: cerca de R$ 30 a garrafa de Cynar comum (900 ml) e cerca de R$ 150 a de Cynar 70 (1 litro).

Jurubeba Leão do Norte

Jurubeba Leão do Norte
Jurubeba Leão do Norte Imagem: Reprodução/Instagram

A popular Leão do Norte é uma de nossas bebidinhas mais conhecidas, lançada em 1920 em Feira de Santana, Bahia. Sua fórmula foi elaborada por Paulo da Costa Lima, pesquisador da flora brasileira e chegado num aperitivo.

Se pensarmos com cabeça colonial, a Jurubeba parte do princípio do vermute europeu: um vinho macerado com botânicos. Diogo Sevilio prefere descolonizar a parada e colá-la à tradição das garrafadas brasileiras, que originam essa e outras bebidas brasileiras.

O bartender destaca seu perfil seco, o amargor acentuado com um toque ligeiramente anisado. Sua complexidade vem da mistura da jurubeba a cravo, canela, boldo, genciana, quássia e outros botânicos.

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Investimento: Cerca de R$ 30 (600 ml).

Conhaque de Alcatrão São João da Barra

Conhaque de Alcatrão São João da Barra
Conhaque de Alcatrão São João da Barra Imagem: Reprodução/Instagram

"É um espetáculo!", define sucintamente Diogo. Vai além:

Ele entra na linha dos bitters, mas não é tão amargo. Tem corpo, doçura mais acentuada e é um bom tempero para quem quer dar um toque defumado aos coquetéis. Uso frequentemente.

A bebida à base de álcool destilado de cana-de-açúcar, extrato de alcatrão vegetal e açúcar nasceu em 1908, em São João da Barra, Rio de Janeiro. Ficou conhecida como "conhaque do milagre" por uma série de propagandas que ressaltavam suas supostas qualidades medicinais.

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"Resfriado não me pega, resfriado não me agarra. De norte a sul, de leste a oeste todos pedem Conhaque de Alcatrão de São João da Barra", cantava um jingle do passado (tem no YouTube).

Até hoje há quem acredite em seu poder terapêutico, em harmonia com leite ou mel e limão. Não só para gripes e resfriados, mas para dar aquele up na potência sexual masculina.

O grupo Thoquino, fundado por Joaquim Thomaz de Aquino Filho, produz outros clássicos de boteco. A queridíssima Xiboquinha (cachaça com mel, cravo, canela, limão e outras ervas) nasceu em 1952, e a Cachaça Praianinha, em 1944.

Investimento: cerca de R$ 25 (900 ml)

Brasilberg

Nos anos 70, o ator Milton Moraes foi garoto-propaganda de Underberg, em pelo menos dois reclames (era assim que se chamava) na TV. "Underberg é na caninha!", ele assegurava, sugerindo a mistura do bitter com cachaça. "A moda é soda" (afff) foi o slogan bolado para vender Underberg com gelo e soda limonada (tem no YouTube também).

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Brasilberg
Brasilberg Imagem: Reprodução/Instagram

A bebida nasceu em Rheinberg, Alemanha, em 1846, na empresa fundada por Hubert Underberg. Em 1932, seu neto Paul Underberg mudou-se para o Rio de Janeiro, quando já importávamos o produto alemão, e resolveu criar sua própria receita, com ervas amazônicas, que rebatizou de Underberg do Brasil.

Em 2007 o amaro ganhou novo nome, Brasilberg. Mas mantém suas características de origem, diz Sevilio:

É um bitter de perfil bem alemão, seco e herbal, diferente dos amaros italianos, mais adocicados e frutados.

Investimento: Cerca de R$ 65 (920 ml)

Paratudo

Paratudo, nascido em Minas Gerais em 1951, chama atenção pelo rótulo duplo em que aparecem indígenas norte-americanos numa espécie de cerimônia, pequenas silhuetas de elefantes, um coraçãozinho com receita de Rabo de Galo e um nome secundário: Raízes Amargas.

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Paratudo
Paratudo Imagem: Reprodução/Instagram

"É uma ode ao globalismo publicitário", diverte-se Diogo, para quem a fórmula mineira nem é tão amarga assim: "é menos seco, mais anisado e algo frutado. O nome faz referência a garrafadas usadas como remédios que 'param tudo', curam qualquer coisa", descreve.

Jatobá, anis, alecrim, cravo, canela, erva-doce, laranja amarga e ruibarbo são alguns dos vegetais que compõem a bebida, feita em Uberlândia com base de fermentado de maçã e álcool etílico potável.

Investimento: Cerca de R$ 20 (900 ml)

Fogo Paulista

Quem foi criança nos anos 70 e 80 lembra da imagem flamejante e onipresente do rótulo de Fogo Paulista nas prateleiras dós botecos. Hoje a ilustração é mais cool, mas a popularidade desse licor de ervas segue firme.

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Fogo Paulista
Fogo Paulista Imagem: Reprodução/Instagram

É um produto da Dubar, empresa fundada em 1913 pela Companhia Antárctica Paulista em São Paulo. Hoje a fábrica pertence ao grupo francês Marie Brizard Wine and Spirits.

A Dubar é uma destilaria muito competente, que produz álcool de alta qualidade e exporta para vários países. Fazem produtos excelentes, como vinho quinado e uma das melhores genebras que já provei, conta Diogo.

Fogo Paulista leva ervas delicadas como alfazema, anis, menta, além de cravo, canela, mel de abelha e mais de 10 botânicos. Nem é tão foguento assim e agrada a quem tem bico doce.

Investimento: cerca de R$ 35 (960 ml).

Cinzano e Martini

Cinzano
Cinzano Imagem: Reprodução/Instagram
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Esses dois vermutes de origem italiana rodaram e ainda rodam um bocado nos botecos. Mesclados à cachaça, fundaram o Rabo de Galo, coquetel brasileiro que só perde em popularidade para a Caipirinha.

São dois vermutes absolutamente honestos, produtos dignos e de qualidade, diz Diogo.

Claro, existem vermutes mais complexos e refinados, para quem quer um Manhattan ou um Rabo de Galo high end. Mas os básicos vão muito bem nas rodadas com a turma num sabadão preguiçoso.

Ao contrário dos amaros, vermutes são vinhos fortificados que devem ter a presença de losna (Artemisia absinthium) entre seus botânicos. Há vermutes mais ou menos doces, mais ou menos amargos e mais ou menos encorpados. Vai do seu gosto.

A Casa Cinzano nasceu em 1757 em Torino, berço do vermute italiano. Martini veio um pouco depois, em 1763, na mesma cidade. Hoje, o Cinzano é fabricado na Argentina, controlado pelo grupo Campari, e o Martini, no Brasil, pela Bacardi Brazil.

Investimento: cerca de R$ 50 o Martini Rosso e cerca de R$ 45 o Cinzano Rosso. Cerca de R$ 200 o vermute Cinzano 1757, mais complexo e importado da Itália.

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