O crítico que virou pão: Luiz Américo Camargo trocou a redação por fornadas

Em meados de 2024, uma enquete informal no Instagram perguntava: qual o crítico gastronômico do seu coração? Entre as respostas, um curioso desconhecimento do que é a tal crítica gastronômica.

Muitos dos citados sequer se consideram críticos gastronômicos, outros dividem amor e ódio nas redes sociais. Um nome, porém, liderava as listas dos que, de fato, sabiam o papel da análise de pratos e restaurantes: Luiz Américo Camargo.

A má notícia para os fãs (e para a crítica) é que ele já não exerce esse ofício há algum tempo e não pretende voltar. A boa notícia é que o mundo ganhou um apaixonado padeiro e a naJanela Padaria, uma rede com alvéolos de dar gosto.

Não dá para ser os dois? Luiz responde franco, direto e sempre (sempre) cortês:

Tem o problema de conflito de interesse. E a gente fala tanto disso em outras áreas. No jornalismo, não pode ser diferente. Em nada, na verdade.

Pão de memória

Divulgação do livro Direto ao Pão (2019)
Divulgação do livro Direto ao Pão (2019) Imagem: Gilberto Jr

Nascido no bairro de Santa Cecília, Luiz teve sim o gosto pelo pão desde cedo, mas aquele bem comum, das padarias de bairro. O "especial" era o pão italiano, trazido pelo pai para o lanche que substituía o jantar aos sábados, "recheado com queijo, salame e tal".

Lembro quando o pão, redondo ou filão, chegava. Tinha aquela casca, aquele gostinho diferente, meio azedinho. Eu achava bom. Então talvez a memória dos pães italianos do Bixiga, especialmente São Domingos e Basilicata, foi a primeira percepção de que pão não era tudo igual, lembra.

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O pão mais corriqueiro era o bengala, hoje reproduzido naJanela com fermentação natural e um grande sucesso das casas - são quatro unidades: Jardins, Higienópolis, Bela Vista e Perdizes.

Se viver de pão não era um projeto lá atrás, a panificação caseira já vinha de família, com um avô que fazia um "pãozinho diminuto ou aqueles pães com muito fermento ou muita gordura", recorda. E aqui, ressalta, nenhuma crítica aos pães caseiros antigos.

"Em geral, como a fermentação era curta, como a farinha não era boa, para você tirar sabor daquilo, você tinha que botar ovo, açúcar, manteiga, margarina, óleo. Então os pães da minha casa eram mais ricos assim, pães mais gordos."

Pão da Capa: dois terços de farinha branca, um terço de farinha integral, fermento natural. Ganhou esse nome por ser a receita da capa do livro Pão Nosso (2016)
Pão da Capa: dois terços de farinha branca, um terço de farinha integral, fermento natural. Ganhou esse nome por ser a receita da capa do livro Pão Nosso (2016) Imagem: Ricardo D'Angelo

O gosto de Luiz por botar a mão na massa só viria quando saiu da casa dos pais, nos anos 90. Curioso, foi atrás de informações e cursos sobre como fazer pão "antes de Google, de YouTube, de rede social", enfatiza. "Era o conhecimento que você ia pegando conforme aparecia", conta.

Se as informações não estavam tão espalhadas e disponíveis, havia uma vantagem que Luiz lembra com saudade:

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"Peguei uma fase da abertura de importação e começo do Plano Real de paridade de 1 para 1 dólar. Você podia comprar muita coisa importada, testar um monte de queijo, arroz para risoto, massas... e eu comecei a cozinhar em casa, sozinho, nessa fase".

Pão de intuição

Segundo Luiz, a intenção era só fazer pão gostoso em casa e que, no começo, era erro atrás de erro, "que é uma coisa que as pessoas não têm hoje, né? As pessoas têm medo de errar. Todo mundo quer fazer pão bonito e cortar ele cheio de alvéolo".

Sua primeira receita, por exemplo, foi uma bengala "bem ruim", afirma. E foi mais de um ano de persistência e paciência para surgirem os primeiros pães "passáveis".

O início real da "decolagem" na panificação de Luiz foi quando ele descobriu a fermentação natural, em livros importados, e insistiu inúmeras vezes em diversas receitas até dominar "um pouquinho" o funcionamento do fermento, anos depois.

Aula de pão, na Levain Escola de Panificação
Aula de pão, na Levain Escola de Panificação Imagem: Arquivo pessoal
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O segredo é você ter o pão, o fermento pra guardar e pra fazer a próxima fornada. A hora que você aprende como dosar isso, a alimentação do bichinho, extrair o fermento que vai pro pão do bichinho e manter pra próxima fornada, terminou o processo, entrega.

Ainda assim, Luiz garante que tudo é menos minucioso do que se espalha por aí. Aos leigos que fugiram da "pãodemia", não parece. Mas pode ser o jeito ponderado do padeiro falando.

De livro em livro - 'Pão nosso: Receitas caseiras com fermento natural', de 2016, 'Direto ao pão: receitas caseiras para todas as horas', de 2019 —, o jornalista virou padeiro e referência mais uma vez. A anterior, era nas redações.

Gastronomia de missão

Comecei a cozinhar nos anos 90 e eu era jornalista já, né? Mas eu nem fazia ideia que eu ia trabalhar com gastronomia, relembra.

Antes disso, Luiz já havia largado a faculdade de engenharia, mas como gostava de escrever, de ler e de ouvir música, o jornalismo pareceu um rumo natural. "No começo foi tiro e frilas para todo lado, até conseguir meu primeiro emprego fixo".

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Antes de cair no mundo da boa mesa, Luiz era responsável pela revista de maior tiragem no Brasil. Algum palpite? Era a de programação da NET, com quase 2 milhões de exemplares para os assinantes.

Agora assalariado, tomou gosto por conhecer os restaurantes que não frequentava mais novo. A falta de hábito na família deixou memórias marcantes, como comer uma pizza numa padaria que tinha o Largo do Paissandú, Bauru do Ponto Chique e hambúrguer das Lojas Americanas na Rua Direita.

Eu gostava de comida, da experiência de ser servido. Isso era uma coisa que me encantava muito. E para quem tem pouco dinheiro, a gastronomia é o luxo mais acessível.

Foto do lançamento do livro Eu Só Queria Jantar (2018)
Foto do lançamento do livro Eu Só Queria Jantar (2018) Imagem: Fernando Cavalcanti

Sem almejar um carrão ou conseguir fazer as super viagens e ainda sem provar os melhores vinhos do mundo, Luiz foi formando repertório com a gastronomia possível.

Já no Jornal da Tarde, trabalhando com o que se chama de "geral", o jornalista se sentia "fora do lugar" — "será que é isso mesmo? Agora já entrei aqui, tenho que ser jornalista. O que eu vou fazer?" - até começar a colaborar com "variedades" em 2003, após uma viagem à Bretanha para escrever sobre história e... comida.

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Do champanhe mais barato para o Réveillon, às matérias "mais leves" para desopilar da rotina de crimes e tragédias da cidade de São Paulo, Luiz foi convidado em 2004 para ser o novo crítico de restaurantes, no lugar de Saul Galvão (outro nome citado com fervor na enquete informal mencionada lá no começo).

Mas como fazer a tal crítica gastronômica? Quanto tem que comer? Quantas vezes você faz?

Também queria fazer do meu jeito, né? Eu ouvia histórias de como eram feitas e fui descobrir, descreve.

Foi "pegando o jeito" que, em 2005, Luiz foi um dos criadores do Paladar e Guia, no Estadão, numa época que "a gente propunha ideias e às vezes aconteciam".

Crítica gastronômica como ela era

O método de trabalho de Luiz é, com certeza, muito diferente do que se entende (ou se vende) como crítica gastronômica na atualidade e gera uma saudade de tempos que essa jornalista que vos escreve não viveu.

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Luiz Américo Camargo
Luiz Américo Camargo Imagem: Ricardo D'Angelo/Divulgação

Para começar, o jornalista não era conhecido e não vivia com o smartphone em punho. Eram pelo menos três visitas: uma sozinho, uma com a esposa, para compartilhar pratos e uma entre amigos, para provar mais coisas. Todas as idas em horários diferentes e dias diferentes. "Você vê no almoço um serviço ótimo, mas no jantar, que estava cheio, o serviço foi ruim, por exemplo. Sempre com sentido de prestação de serviço".

Preciso contar bem a minha experiência no restaurante para que a pessoa possa reconhecer um lugar com serviço muito formal, outro mais à vontade, quais as alternativas de executivo ou jantar. Porque, se você for pensar, é muito cruel você ir pra casa e dar um tiro só. Por sorte, a gente tinha uma condição de pagar tudo e eu tentava me comportar como cliente comum.

Ao escrever, Luiz estabeleceu uma marca pessoal nas suas críticas. "Eu tentava fazer uma coisa que tivesse um texto agradável, que um substrato de reportagem com informação legal uma historinha, uma conversa que você ouve, algo que você pode incorporar."

Ao contrário do que muita gente pode imaginar, ser pago para falar de comida não é fácil, pelo menos para aqueles que levam o ofício realmente a sério.

"Era uma rotina bem pesada. Comia, almoçava fora quase todo dia, jantava fora quase todo dia. Às vezes, eu ia no restaurante sábado e domingo e minha família ia junto. Não era uma coisa tão conveniente", conta.

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Também em oposição ao que muitos celebram, Luiz é lembrado por leitores, colegas, donos de restaurantes e chefs como um crítico (obsessivamente) justo.

Só apresentei nas críticas o que acreditei ser de interesse público. Pensar em quem vai me ler. Sempre prestando o serviço.

Hoje, fora da crítica e do jornalismo há alguns anos, Luiz se diz leitor mais dos serviços dos restaurantes, de ver quem abriu e quem fechou. Sobre redes sociais, o jornalista compara ao que se presta as críticas de perfis que pipocaram nos últimos anos às que ele fazia.

Eu não sei para quem eles trabalham. Eu trabalhava com leitor. A percepção que eu tenho é que são pessoas que, às vezes, entendem muito o assunto, mas trabalham para gerar algum tipo de confusão, de polêmica, para aumentar o engajamento deles.

Ao mesmo tempo, não acredita que o poder desses "críticos das redes" é grande o suficiente para preocupar os restaurantes. "O restaurante que é muito bom, realmente consistente, não vai ser fechado por uma crítica. Assim como eu acho que o restaurante que é ruim, mas bombado por críticas falsas, também não vai se manter."

Olhando para trás, teria Luiz sido injusto em alguma crítica? Ele assume que sim.

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"Talvez, uma coisa que eu comecei a fazer e depois eu parei era ir a restaurantes com pouco tempo de vida, para dar uma novidade. E pensava em um argumento até um pouco prepotente que se o cara abrir as portas e ele tá cobrando preço cheio de público, ele tá no mercado."

Pouco tempo depois, percebeu que a pressa era inimiga da boa crítica e fruto de uma competição. "Percebi que era melhor esperar. Era mais justo para o leitor".

Existe vida após a crítica

Atualmente, sem as amarras e obrigações da crítica, Luiz se deixa encantar por alguns bons restaurantes e pensa que procuraria lugares fora dos holofotes. Luiz é certeiro e suave: "o Cepa. Acho o trabalho deles muito bom."

Cannelés da naJanela Padaria
Cannelés da naJanela Padaria Imagem: Ricardo D'Angelo

Diante de beigales, croissant e cannelé perfeitos (e não, essa jornalista não se considera ou se autodenomina crítica gastronômica), Luiz revela se sente falta do passado nas redações.

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Eu tenho uma característica: lembro das coisas com carinho, mas não tenho saudade. Era gostoso, mas era cansativo.

Em seu livro Eu Só Queria Jantar, Luiz conta que, depois deixou a crítica gastronômica, em 2015, ficou um mês ou mais comendo em um bar na esquina e fast food "para sair um pouco do negócio de restaurante".

Aula no Taste 2016, evento do qual é curador desde o início
Aula no Taste 2016, evento do qual é curador desde o início Imagem: Arquivo pessoal

A gastronomia, no entanto, nunca ficaria longe. No mesmo ano, se preparava para ser curador do Taste São Paulo, evento que todos os anos reúne restaurantes de renome em uma feira democrática.

Na primeira edição, no Clube Hípico de Santo Amaro, foram 14 restaurantes e 17 mil visitantes. Na última, já no Parque Villa-Lobos, o número cresceu para 30 restaurantes e 75 mil pessoas. "É um evento de curtição gastronômica", descreve.

Marie Camicado, Luiz Américo e Fábio Kow
Marie Camicado, Luiz Américo e Fábio Kow Imagem: Ricardo D'Angelo/Divulgação
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Sentado em uma mesa da unidade mais nova de sua padaria em sociedade com Fábio Kow e Marie Camicado, nos Jardins, Luiz conta que a ideia nunca foi ser grande.

A gente tentou ter esse espírito do artesanal, mas de um jeito mais profissionalizado e mais presente das pessoas, conta.

Jornalista, padeiro e agora empresário, ele "reaprendeu" a fazer pão, agora para clientes assíduos nos arredores de cada casa. E nada de horários esdrúxulos e fornadas limitadíssimas.

"A briga que a gente comprar é um pão de qualidade acessível", explica o padeiro que sabe escrever, o jornalista que sabe fazer pão.

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