'Advogado que gostava de cozinhar', chef largou direito pela comida mineira

Para o chef mineiro Caio Soter, de 34 anos, que comanda o restaurante autoral Pacato, em Belo Horizonte (MG), um dos momentos decisivos de sua vida ocorreu numa noite de quarta-feira, em 2018.

O celular dele tocou e do outro lado da linha estava o chef Flavio Trombino, que comanda o Xapuri, na capital mineira. "Ele me convidou para ajudá-lo em alguns almoços e jantares que faria naquele final de semana, durante o Festival de Gastronomia de Tiradentes. Topei na hora", lembra Soter.

Após desligar o telefone, porém, ele se deu conta de que não poderia ter aceitado a proposta. Afinal, dali alguns dias se esgotava o prazo de Soter para apresentar o seu projeto de mestrado em direito tributário, no qual ele havia trabalhado por um ano e meio.

A partir dessa escolha inconsciente, eu entendi que a cozinha não seria mais um hobby para mim, lembra ele, que na época atuava como advogado.

Só por esse episódio dá para notar que a trajetória profissional do chef mineiro não é das mais convencionais. Formado em ciências políticas e direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Soter deu os seus primeiros passos na cozinha durante um intercâmbio para os Estados Unidos.

Por lá, trabalhou como lavador de pratos em uma loja da rede de fast food Wendy's e, depois, na cozinha de um restaurante instalado em um condomínio de luxo em Montana. De volta ao Brasil, porém, Soter deixou a cozinha de lado, ao menos no aspecto profissional.

"Eu virei o cozinheiro da turma. Fazia para os amigos aqueles pratos que quem está começando a cozinhar adora como risoto, hambúrguer e massa", lembra ele.

Caio Soter
Caio Soter Imagem: Divulgação

O começo

Embora não tenha abraçado a profissão de cara, Soter passava as horas vagas devorando livros de receitas e assistindo aos mais diversos programas dedicados ao tema. Um deles foi o documentário Steak (Re)volution (França, 2014), dirigido por Franck Ribiere.

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Em uma das cenas aparece a câmara de maturação do Peter Luger, no Brooklyn, em Nova York (EUA), o que deixou Soter fascinado pelo dry aged, técnica de maturação de carnes em que a peça perde umidade e ganha complexidade de sabor.

Junto com o seu amigo de infância, Guilherme Piancastelli, Soter começou a fazer testes em uma geladeira velha adaptada e a distribuir as carnes dry aged aos amigos.

Diante dos elogios, a dupla inaugurou em 2017 a marca Umami Steak, na capital mineira. Com isso, a dupla começou a participar de diversos eventos dedicados ao churrasco na capital mineira, mas conciliando com a carreira de advogado.

Nesse período, Soter conheceu Trombino e outros chefs locais. Tomou gosto pela profissão e ia abraçando as oportunidades que surgiam pelo caminho. Uma delas foi ministrar aulas seguidas de jantares no Alma Chef, extinto restaurante comandado pelo chef Felipe Rameh.

Quando eu ia dar aula de cozinha francesa, por exemplo, eu pesquisava nos livros, assistia uma porção de vídeos, calçava minha cara de pau e ia (risos), lembra ele.

Outra oportunidade foi realizar alguns jantares no extinto restaurante Trindade, do chef Fred Trindade. "Uma vez ao mês, ele emprestava o restaurante para alguém que gostava de cozinhar, mas não era profissional da área", lembra Soter, que realizou alguns jantares nesse estilo.

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Uns meses antes do fatídico telefonema de Trombino, Rameh entrou em contato com Soter para ver se ele toparia assumir a cozinha do Alma Chef. "Naquele momento, eu não me sentia pronto. Mas Rameh me tranquilizou dizendo que iria estar ao meu lado e me ajudar", conta o chef mineiro.

Foi em abril de 2019 que Soter parou de advogar e se tornou cozinheiro.

Despertar de um chef

Assim como a sua trajetória, a formação de Soter também não foi das mais tradicionais. Durante três anos, o seu livro de cabeceira foi o Le Cordon Bleu: Todas as técnicas culinárias (Editora Marco Zero).

Ele destrinchou capítulo a capítulo até conseguir dominar as técnicas da cozinha clássica. A obstinação era tanta que, certa vez, ele comprou 20 quilos de cebola para praticar, repetidamente, alguns cortes.

Ninguém quer gastar tempo com algo tão chato como cortar tanta cebola, mas eu queria ser um bom cozinheiro. E acredito que estou nessa busca até hoje, diz Soter.

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Caio Soter
Caio Soter Imagem: Divulgação

Às sextas-feiras, Soter saía do escritório e passava no açougue para buscar aparas de ossos. E, na mesma noite, iniciava o preparo de seu molho rotî, que só ficaria pronto no domingo. Porcionava em potinhos e levava para todo mundo provar. Após os feedbacks dos amigos, passava no açougue, pegava mais aparas de ossos e começava tudo de novo.

Embora o Alma Chef estivesse indo bem naquele momento, a pandemia foi um baque - o restaurante fechou em junho de 2020.

Por ironia do destino, Soter tinha acabado de retornar para Belo Horizonte (MG) após as gravações da primeira temporada do reality show Mestre do Sabor (Globo).

Foi como se alguém que eu gostasse muito tivesse morrido, compara ele.

Mesmo assim, o chef mineiro nem cogitou a possibilidade de voltar para o direito. Do Alma, passou a comandar a cozinha do restaurante brasileiro O Jardim, na capital mineira, e até cogitou abrir um restaurante na capital paulista, mas a ideia não foi para frente.

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Em setembro de 2021, ele inaugurou o Pacato, o seu restaurante autoral em Belo Horizonte (MG).

Mineiridade no prato

Beira de estrada: misto quente com multiesférico de presunto e urucum; ovo quente com manteiga fermentada; e pão de queijo com linguiça, chips de linguiça e gel de soro de queijo
Beira de estrada: misto quente com multiesférico de presunto e urucum; ovo quente com manteiga fermentada; e pão de queijo com linguiça, chips de linguiça e gel de soro de queijo Imagem: Nani Rodrigues

Embora no Alma Chef quem dava a palavra final do cardápio era Rameh, foi ali que Soter teve a oportunidade de desenvolver a sua identidade na cozinha.

Com o Pacato, ele quis ir na contramão de outros restaurantes do mesmo estilo da cidade, que servem pratos com camarão e robalo, sendo Minas longe do mar.

Eu entendi que seria muito importante contar a história de onde a gente veio. Por isso, a ideia foi apresentar uma cozinha essencialmente mineira, que tenha a ver com o nosso terroir e a nossa cultura alimentar, explica o chef.

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Para isso, Soter mergulhou na pesquisa histórica sobre a origem da culinária mineira, que está na cozinha de quintal, com base "nas hortaliças plantadas no fundo das casas e na criação de animais como porco e galinha", explica o chef mineiro. No primeiro ano do Pacato, o menu degustação era sustentado por esses pilares.

Já na temporada seguinte, Soter ampliou o seu olhar sobre a cozinha mineira, que está longe de ser uma coisa só. "Existe a cozinha do norte, do sul de Minas, do Triângulo Mineiro, da Zona da Mata", explica ele, que teve como inspiração a cozinha do Vale do Jequitinhonha para o menu degustação servido no ano passado.

Além de trocar o cardápio, Soter cria uma experiência imersiva. "A cada temporada, a gente muda o uniforme, o enxoval de louças, a decoração e a playlist, para ficar de acordo com o tema atual".

Em cartaz até o final de março, o menu "queijo: vida e tempo" (R$ 330,60, oito etapas) é dedicado ao queijo Minas artesanal, que teve o seu modo de fazer reconhecido como patrimônio cultural e imaterial pela Unesco.

Sal da terra: cará na manteiga queimada com massa fresca de queijo, glace de cebola e sal grosso de "pingo"
Sal da terra: cará na manteiga queimada com massa fresca de queijo, glace de cebola e sal grosso de "pingo" Imagem: Nani Rodrigues

Embora seja considerado um dos talentos da cena gastronômica mineira, Soter admite que a sua transição de carreira não foi das fáceis - pelo contrário.

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Diferentemente de muitos, que fazem a transição de carreira por estarem insatisfeitos com o trabalho, eu era muito feliz como advogado. Trabalhava no melhor escritório de direito tributário em Belo Horizonte (MG) e estava ganhando notoriedade na área. Achava que ia ser um advogado que gostava de cozinhar, conta ele.

E, por mais de um ano, esse foi um tema recorrente na terapia. "Naquele momento, eu entendi que, apesar de estar tudo certo, tinha descoberto algo que fazia mais sentido para mim. E, desde então, nunca mais advoguei e nem lembro como é", conta Soter.

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