É dia de feijoada na sua cidade? Recife imperial começou a difundir hábito

Em 1827, um anúncio no "Diário de Pernambuco" informava os frequentadores da Locanda da Águia D'Ouro o cardápio da semana. O restaurante, localizado na Rua das Cruzes (hoje Rua Diário de Pernambuco), na região central do Recife, fez, talvez, o registro mais antigo da associação da feijoada a um dia específico da semana.

"Às quintas-feiras, excelente feijoada à brasileira, tudo por preço cômodo", dizia o anúncio. Seis anos mais tarde, uma "casa de pasto, hospedaria e botequim" na capital pernambucana também avisava à clientela que quinta-feira era dia de fazer a "excelente feijoada de orelheiras".

Estabelecimentos comerciais nos núcleos urbanos, como esses pernambucanos do Brasil Império, ajudaram a difundir o hábito. O sociólogo Carlos Alberto Dória, autor de livros como "Formação da Culinária Brasileira" (Editora Fósforo), acredita que os hotéis cariocas do começo do século 20 foram os grandes responsáveis por dar esse impulso.

A demanda popular acabou fixando o prato nos cardápios semanais. Foi nesse mesmo contexto, aliás, que a feijoada como a conhecemos surgiu.

Como nasceu a feijoada

Feijoada
Feijoada Imagem: Getty Images

A associação estrita entre feijão-preto e carnes, constituindo a feijoada, teve origem no Rio de Janeiro - onde esse feijão é o mais popular -, e não nos engenhos de açúcar, como alimento de escravizados, conforme espalhou o folclore alimentar, escreveu Dória.

Afinal de contas, onde não há liberdade não há desenvolvimento culinário, como lembrou o sociólogo em entrevistas. A cachaça, também associada a lendas do período escravagista, não foi criada em senzalas, mas provavelmente nos engenhos de cana no século 16.

O grande folclorista Luís da Câmara Cascudo, no clássico "História da Alimentação no Brasil", conta que não encontrou a feijoada como "prato completo" antes do século 19 e que ela se difundiu como um prato urbano, especialmente em hotéis e pensões cariocas. Mais tarde, os modernistas, nos anos 1920, a transformaram em símbolo de brasilidade.

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"O que chamamos 'feijoada' é uma solução europeia elaborada no Brasil", escreveu Câmara Cascudo, para quem "a feijoada, simples ou completa, é o primeiro prato brasileiro em geral". Talvez por isso os anúncios no Recife de quase 200 anos atrás falavam em feijoada "à brasileira".

A feijoada é a nossa versão de um hábito muito antigo: fazer um cozido com leguminosas e carnes diversas. É algo que vem do Império Romano e que virou tradição em várias antigas regiões dominadas por Roma.

O cassoulet (França), o cozido transmontano (Portugal) e a fabada asturiana (Espanha) fazem parte da família. A cachupa (de Cabo Verde, que foi colônia portuguesa) e o locro (dos Andes argentinos, mas também presente em outros países sul-americanos) também são ensopados que misturam feijões e carnes diversos.

No Brasil, o encontro de ingredientes vindos de outras partes do mundo propiciou o surgimento do nosso prato. O feijão-preto e a mandioca, originários da América do Sul, conquistaram portugueses, que introduziram o porco e a couve, da Europa, e o arroz e a laranja, da Ásia.

Câmara Cascudo resumiu a feijoada completa a "um modelo aculturativo do cozido português com o feijão-e-carne-seca iniciais". Para ele, trata-se do "prato mais gloriosamente nacional do Brasil".

Viajantes como Jean-Baptiste Debret retrataram a popularidade dessa mistura, que alimentava as camadas mais pobres da população. Um "miserável pedaço de carne seca", um "punhado de feijões-pretos", uma "grande pitada de farinha de mandioca", registrou o pintor francês.

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Boutique de Carne-Seca, de Debret
Boutique de Carne-Seca, de Debret Imagem: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3736

O explorador britânico Richard Burton, que viveu no país nos anos 1860, escreveu, em "Viagens aos Planaltos do Brasil", que a iguaria está "infelizmente em quase todos os pratos, o que não faz bem à digestão do jovem Brasil". Para ele, "o mesmo se pode dizer de muitos lugares no oeste dos Estados Unidos e na China, onde a população é quase toda feita de porco! Pelo que parece, é um alimento predileto das terras jovens.."

De volta à Europa, a esposa do explorador, a escritora Isabel Burton, ao redigir suas memórias, lamentou que havia mais de duas décadas que não sentia o aroma de feijoada. "É deliciosa, e eu me contentaria, e quase sempre me contentei, de jantá-la."

Hoje em dia não há apenas uma receita de feijoada. Pelo contrário, parece ser ainda um prato em construção, como afirmou nosso folclorista maior no fim dos anos 1960, escreveu o historiador Rodrigo Elias em um artigo a respeito.

Feijoada e os dias da semana

Elias lembra que existem variações aqui e acolá, com adaptações aos climas e a outros fatores culturais nesse país continental. Por isso, até o dia tradicional da feijoada varia.

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Acredita-se que o costume de fixar os pratos de acordo com o dia da semana seja herança da colonização portuguesa. A industrialização do país, a partir do fim do século 19, fez com que muitos trabalhadores passassem a comer na rua.

Com isso, pensões viraram restaurantes e reforçaram o hábito para facilitar o dia a dia. A operação, as compras e a própria rotina dos clientes ficava simplificada, pois nem era preciso de cardápio para saber o prato do dia.

Atualmente, sábado é o mais próximo de um dia universal para se jogar numa pratada de feijoada. Não tanto pela associação à rotina dos trabalhadores, mas, pelo contrário, pelo seu caráter celebratório.

"Comida de dia de festa", como definiu Câmara Cascudo. Por isso, é mais comum servi-lo em dias em que muitos estão de folga, seja em Florianópolis seja no Recife.

A questão do dia da semana é mais relevante no eixo Rio-São Paulo. Cariocas cultivam o hábito das sextas-feiras e paulistanos, das quartas (além do sábado, comum a ambos).

O tema motiva debates no fórum Reddit e mexeu na programação da cozinha do Palácio dos Bandeirantes. Em 2023, primeiro ano do carioca Tarcísio de Freitas no comando do governo paulista, os restaurantes da sede do governo mudaram a programação.

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A feijoada, sempre servida às quartas, passou para sexta-feira. O virado à paulista, tradição das segundas em São Paulo, foi para quarta.

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