Os restaurantes de quatro cabeças: rumo para Taiwan passa pela Vila Mariana

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Em tempos de vídeos ágeis e vozes distorcidas, textos curtos e superficiais, não são poucos os endereços ditos "imperdíveis" em São Paulo. Somente alguns, porém, realmente fazem jus ao hype que atraem.
São assim dois lugares irmãos, na pacata Rua Áurea, na Vila Mariana: portais para um país distante e, para a maior parte dos brasileiros, desconhecido e até misterioso.
O caminho para Taiwan passa pelo Brasil, em rumos de Mapu e Aiô, como revelam Duilio Lin, Caio Yokota e Victor Valadão de corpo e Dona Jasmine, direto de Taipei, de alma.
Um: o cabeça e o começo

Na conversa de três atos, tudo começa fora da cozinha, com Duilio. Hoje com 36 anos, ele descobriu que queria ter mesmo um restaurante depois de passar pelo mundo corporativo em China, se apaixonar na Venezuela e ter certeza da nova carreira e de um casamento na Colômbia.
De volta ao Brasil, uniu as raízes de sua mãe, a taiwanesa Dona Jasmine — ex-chef do Templo Zu Lai —, o bom momento da culinária asiática em São Paulo finalmente além dos famigerados rodízios japoneses e a referências pelo mundo, como BAO London, Little Bao de Hong Kong, e o Momofuku de David Chang, em Nova York.

Tudo isso o faria decidir: o rumo seria pelos baos (pãozinho de leveza e textura únicas, cozido no vapor) vendidos em barraquinhas.
Aí a gente fez esse primeiro evento, comprou uns equipamentos e foi uma loucura. Com a ajuda de amigos e família, vendemos mil baos num final de semana, relembra o começo, em fevereiro de 2017.
Num dia dos cinco meses de foodtruck de baos por cervejarias de São Paulo, Duilio foi apresentado a Caio Yokota.
Dois: entre Japão e Taiwan

Aos 29 anos, Caio tem a cozinha como casa desde muito cedo. Nascido em Bragança Paulista, cresceu no restaurante mais antigo de sua cidade, comandado por seu pai há mais de 40 anos.
Apesar da influência japonesa e uma vontade de viver de yakisoba, tempurá, karê, ainda insistiu dois anos no curso de Engenharia de Alimentos na Unicamp, mas não teve jeito: era na gastronomia que se encontraria.
Em São Paulo, na Anhembi Morumbi, trombaria Victor Valadão, o único colega que, como ele, trabalhava para viver.
A gente compartilhava muito das nossas vivências, dos trabalhos, enquanto cozinhava também. A gente sempre teve muita paixão pela produção, recorda.

Com passagens por Miya e Aizomê, seria indicado pelo amigo para o Tuju: "Foi o meu primeiro emprego fixo e uma experiência revolucionária. Com duas estrelas, ficou ainda mais intenso".
Com a saída da máquina elegante de Ivan Ralston, Caio e Victor ainda trocaram algum tempo e estabeleceram metas. Em dois anos, Caio queria voltar ao Japão para cozinhar.
A participação nos foodtrucks com Duilio e jantares e eventos ao lado do amigo, porém, o fariam mudar de ideia, pelo menos por enquanto. Surgia o Mapu e o trio (ou o quarteto com dona Jasmine).
Culturalmente, me identifico muito com a trajetória do Du, com a Dona Jasmine, a questão de imigrantes amarelos. O que trouxe até a gente aqui foi essa união de valores, acredita Caio.
Três: BH-Taipei - São Paulo (e Fortaleza)

Comida está no DNA e na história de Victor. Filho de mineiros que saíram de Belo Horizonte para o Pará, ele passou mesmo boa parte da vida em Fortaleza. Puro suco de Brasil.
Hoje, aos 31 anos, lembra-se da presença da avó materna como a matriarca da boa cozinha e com alma empreendedora. Foi graças a ela que, depois que o avô de Victor quebrou, a família abriu, em BH, o Petisqueira da Mamãe. Anos depois, um tio faria a "filial" em São Luís do Maranhão.
Tenho essa relação de restaurante ser uma coisa pra sair da pindaíba. Não era o que eu queria, vendo meu tio muito ausente da família, e sempre muito estressado, diz.
O gosto pela comida, no entanto, estava latente desde a adolescência, mesmo em tempos de curso de Direito.
"Criei referência de comida ser algo bom, mas eu falei 'gosto de Direito, vou estudar Direito, vou ser jurista, vou ganhar uma grana e eu abro um restaurante um dia", lembra.
No meio do curso, porém, se viu infeliz e voltou a sonhar. "Deixa eu aprender a abrir um restaurante e aí depois eu vejo como eu arrumo essa grana'"
Na conversa com os pais, confessou que queria deixar Fortaleza e ir a São Paulo. "Nem a pau" foi a resposta imediata. A solução foi baixar em Belo Horizonte, morar com o irmão e começar a faculdade em gastronomia.
Entre trabalho no boteco de uma prima, um estágio com Felipe Rameh e um namoro à distância, Victor foi estudando, anotando, provando. "Dei um jeito e vim para São Paulo".
Na capital paulista, passaria por estágios no D.O.M de Alex Atala e no extinto Epice, de Alberto Landgraf. E como Caio lembrou, o que os unia em uma turma de pretensos chefs saídos do colégio era o cansaço de trabalhar para se sustentar.
"Quando o Epice fecha, deixo meu currículo no Tuju. Ivan vira pra mim e fala 'nossa, é mineiro, né? Você deve cozinhar bem. Tá bom, vamos te chamar'", relembra.
O resto são dois anos de história entre à la carte, menu degustação, uma estrela Michelin e depois duas.

"A gente subiu até o topo que a gente conseguia na época", lembra. Em 2017, Victor sai para entender sua personalidade na cozinha, seguindo em projetos paralelos ao lado de Caio.
No final de 2018, o chef voltava à batalha de currículos. Cansado e sem a menor "vontade trabalhar pra filho da puta", Victor bateu na porta do roommate (Caio, claro) e topou tentar fazer acontecer o Mapu.
Foi tudo uma jornada de puro aprendizado. Fazendo uma comida que a gente não entendia. A construção de aprender, assimilar e colocar em prática as coisas que a gente se propõe a fazer aqui, resume.
Quatro: a mentora

Há quarenta e cinco anos no Brasil, os pais de Duilio são parte importante da decisão por mergulhar na identidade taiwanesa, mas não só. Dona Jasmin é como um quarto elemento do Mapu, desde sua concepção.
É uma mistura de coisas que eu como em casa, referências de sabores, mas o principal é a berinjela (cuja receita foi exaltada em Receita de Família, em 2022) da minha mãe. Alguns baos a gente acabou pegando receitas mais tradicionais. No cardápio geral, tudo passa um pouco pela revisão dela. É muito uma troca, conta Duilio.
E antes disso, dona Jasmine ajudou a dupla de chefs a desenvolver as referências de Taiwan para depois afinarem as receitas com seus conhecimentos.
No começo, a gente não tinha um paladar. Mas, ao mesmo tempo, a gente não tocou em muitas coisas, só operacionalizou mantendo a qualidade. A panqueca de cebola, os dumplings, o chili oil foi ela que passou pra gente, conta Caio.
Dona Jasmin não participou da conversa por estar, mais uma vez, em Taipei. Mas nem por isso estava menos presente: o trio mostra fotos e mais fotos de produtos e pratos que ela sugere aos jovens mentorados. Na apresentação dos pratos, seu nome surge em muitos momentos.

"É uma referência de anos profissionalmente, culturalmente, familiarmente. Ela é uma entidade de sabedoria, de pensamento", se derretem todos ao falar da senhora de 72 anos, que no Mapu tudo olha e no Aiô, tudo inspira.
Todos: a união
Caio e Victor dividem a sua ligação com a cozinha de Taiwan em momentos:
Quando abrimos o Mapu e não entendemos nada de cultura taiwanesa, mas a gente é cozinheiro e quando vamos para Taiwan e sacamos os sabores e texturas que Duilio e dona Jasmine tanto falavam.

E o terceiro, a pandemia, quando aprendem a fazer uma receita nova por semana, levam uns puxões de orelha da Dona Jasmine e fazem nascer o Aiô.
"A gente tinha que chegar num lugar onde eles pudessem usar a experiência que tinham, o talento que eles têm como cozinheiros, o conhecimento que eles têm pra transformar isso aqui e a gente fazer esse negócio diferente", relembra Duilio.

"Quando fechou tudo, a gente teve muito tempo pra estruturar várias coisas. Uma delas foi o que a gente queria ao longo prazo", conta Duilio.
A casa onde funciona o Aiô tomou a forma das ideias. A garagem virou bar, o bar precisava de fôlego e identidade e nasceu liderado por Maurício Barbosa - vindo do Tuju, como Caio e Victor.
"Os coquetéis, para mim, são até mais gastronomia do que vinho e destilados, porque é receita, mistura, sabores", compara Caio.

Seria fine casual, uma outra aura, produtos mais específicos de Taiwan trazidos por Duilio de três em três meses, frutos do mar e peixes, hospitalidade como um dos principais focos, uma imersão, talentos para serem utilizados e mostrados.
Aberto em 2023 e lotado desde o primeiro dia — ponto em comum com o irmão mais velho Mapu —, o restaurante leva o nome que traduzido para o português quer dizer "surpresa". "A gente ficou meio chocado com a aderência", brinca Caio. E vieram premiações e pessoas. "Balanço é mais do que positivo, é surpreendente".
Instigante também é como funcionam dois negócios de quatro cabeças. Para o trio presente, é justamente o segredo da fluidez.

Nunca foi algo meu, nunca foi algo do Caio. Isso sempre foi uma construção de muita gente, diz Victor.
"Poucas pessoas falam sobre as dificuldades que é construir esse ambiente saudável. O quanto exige de cada um lidar com o ego, lidar com o orgulho, lidar com a irritação e lidar isso da maneira saudável", conclui Duilio.
Cada um do seu jeito, no seu tempo, com sua história, mas com olhos, coração e pratos voltados para Taiwan.
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