'Preço de Europa': Argentina cara obriga turistas brasileiros a improvisar

O ato banal de cruzar a fronteira entre o Uruguai e a Argentina para o casal Paula Schmitt, 35, servidora pública, e seu marido, Mateus Guterres, 37, engenheiro de produção, incluiu um susto no fim do ano passado: os preços do lado argentino haviam entrado em disparada e estavam em quase o dobro do que haviam pagado na vez anterior em que fizeram turismo no país, cerca de um ano antes.

O casal, que mora em Santa Cruz do Sul (RS), tem como hobby o montanhismo. A paixão pelo esporte os levou a decidir por férias em Buenos Aires e Bariloche, como já haviam feito anteriormente. O tão planejado lazer, porém, deixou longe a esperada tranquilidade e trouxe na mala a ansiedade.

Após realizarem o percurso de carro até o Uruguai, o primeiro assombro ocorreu quando cruzaram a fronteira para Buenos Aires. O ferryboat custaria quase R$ 600, praticamente o dobro do que eles tinham pagado no ano anterior pela mesma travessia.

Paula Schmitt e seu marido, Mateus Guterres
Paula Schmitt e seu marido, Mateus Guterres Imagem: Arquivo pessoal

Viajamos há exatamente um ano fazendo um roteiro parecido e agora, no fim de 2024, os preços nos deixaram até ansiosos, chegamos a imaginar que teríamos até de adiantar a data da volta da viagem. A impressão que eu tive é de que estávamos pagando preço de Europa, conta Paula.

Paula e Mateus saíram de casa na expectativa de curtir os bons restaurantes, como costumavam fazer até o ano de 2023. O passeio antes acessível ficou inviável.

Ir em restaurantes conceituados, comer nas famosas parrillas, ficou caríssimo. Era fácil gastar R$ 500 para duas pessoas para comer a mesma coisa como fazíamos antes. Um café com bolo custava R$ 160. Este ano tivemos que dar um jeito, comprar lanches, pelo menos a famosa media luna ainda se manteve num patamar razoável, foi a maneira que encontramos para seguir viagem, relembra a servidora pública.

Também foi necessário alterar o cronograma das visitas turísticas. Entraram em cena os passeios em museus de visitação gratuita ou de bilhetes módicos, mais baratos que outros programas culturais.

"Decidimos não fazer a visita ao cemitério da Ricoleta, por exemplo, pois convertendo ficaria numa média de R$ 250 por pessoa. A saída foi optar por outra programação para conseguir aproveitar o tempo da viagem", explica.

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Lua de mel amarga

Priscila Barros Souza e Victor Henrique Souza, em Puerto Madero
Priscila Barros Souza e Victor Henrique Souza, em Puerto Madero Imagem: Arquivo pessoal

A lua de mel do jornalista Victor Henrique Souza, 26, jornalista, e Priscila Barros Souza, 30, contadora, acabou não sendo tão doce quanto sonhado.

"Viajamos em dezembro, adoramos o país, é lindo, mas as coisas estão realmente muito caras", lamenta Victor.

O casal afirma que os gastos da viagem, só com alimentação e transporte, ficaram na média de R$ 1 mil por dia.

"Em média gastamos R$ 200 no café, R$ 300 no almoço, mais R$ 300 na janta e mais uns duzentos reais considerando transportes do dia e alguns souvenirs", explica.

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Para garantir a viagem, o casal teve de retirar uma parte do valor que tinha recebido como presente de casamento de seus convidados, algo que não estava nos planos. Só assim puderam garantir alguns programas como ir jantar no Don Julio, um dos mais conceituados restaurantes da América Latina e eleito o melhor da região pelo 50 Best em 2024.

Tentamos não deixar de fazer nada do que era planejado mas, ainda assim, a gente pagava cerca de R$ 20 uma garrafa de água, fala.

Nem a paixão sobrevive

Osmar Vitorino em frente ao Obelisco, em Buenos Aires
Osmar Vitorino em frente ao Obelisco, em Buenos Aires Imagem: Arquivo pessoal

Um motivo prosaico talvez tenha levado o maior contingente de brasileiros a Buenos Aires nas últimas semanas de 2024 em muito tempo: a final da Libertadores, realizada no Monumental de Núñez, reuniu Botafogo e Atlético-MG. A paixão pelo futebol, contudo, não impediu os torcedores de perceberem a carestia da capital argentina.

Os mais jovens, dispostos a tudo por seus times no momento histórico, se submeteram a uma verdadeira maratona: um caso é o do estudante de fisioterapia carioca Osmar Vitorino, de 21 anos.

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Depois de trilhar um périplo de mais de 24 horas em aeroportos pela América do Sul, a chegada se converteu em caçada por alguém que dividisse um Uber até o AirBnb, locado coletivamente com outros botafoguenses. O preço do transporte estava proibitivo e, desde Ezeiza até o endereço, a corrida saiu por cerca de R$ 300.

À noite, fui com dois amigos ao Puerto Madero, onde estavam outros brasileiros que foram para o jogo. Comer e beber estava inviável, com uma cerveja saindo por R$ 45. Ficamos pouco tempo e procuramos uma carrocinha com choripan, que saiu por R$ 40. Tudo muito caro. Cada coisa que pensávamos em fazer, tínhamos de procurar uma alternativa mais barata, disse Vitorino.

Passado o jogo, comemorado o título, seguia o drama de trancar o fôlego até a viagem de volta para o Rio de Janeiro.

"Voltei no voo das 6h da manhã. Na noite da festa do título, mais choripan? Todo o tempo que estive em Buenos Aires, não sentei nenhuma vez em restaurante para comer. Não havia como", destacou o estudante carioca.

O que explica a alta

A carestia argentina tem explicações de cunho político e econômico. Em termos bastante simples, as medidas radicais de austeridade fiscal patrocinadas pelo presidente Javier Milei provocariam a apreciação do dólar — e a consequente desvalorização da moeda argentina, o peso.

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O governo, como medida para proteger a classe média e garantir um mínimo de popularidade para atravessar o primeiro ano de Milei, resolveu conter a desvalorização do peso artificialmente, num sistema cambial chamado "crawling peg". Por esse sistema, em 2024 o peso seria desvalorizado em apenas 2% ao mês. A partir de fevereiro, será apenas 1%.

Analistas econômicos sabem que essa condição artificial de valorização do peso é insustentável no longo prazo, e o governo também reconhece o problema.

Para garantir um pouso mais tranquilo, Milei e sua equipe econômica tentam novo empréstimo junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que permita lastrear minimamente a moeda e evitar uma maxidesvalorização, um fantasma que assombrou a Argentina desde o final da gestão Carlos Menem e que levaram ao trágico ano de 2001 para o país.

Milei tem dito que a Argentina, mais cedo ou mais tarde, terá de readotar o sistema de câmbio flutuante, como o do Brasil, em que o mercado, pela livre oferta e procura, define a cotação do dólar. A história da Argentina, rica em ciclos de euforia econômica e depressão, sugere que os ventos podem mudar de lado a qualquer momento.

Enquanto os preços argentinos não se rendem à realidade, os turistas brasileiros ficarão mais longe de Puerto Madero, dos assados, vinhos caros e noites de tango - e mais perto do choripan e da media luna.

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