Lúcifer também é 'santo' e tem uma única igreja dedicada a ele no mundo

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Na cidade italiana de Cagliari, a rua São Lúcifer é o endereço da única igreja do mundo dedicada ao santo do mesmo nome. No subsolo do templo, fiéis e turistas podem visitar a cripta com a sepultura desse mártir dos primórdios do cristianismo na ilha da Sardenha.
Antes de pensar em conspirações satanistas dentro da Igreja Católica, fique sabendo que o bispo morto no ano 370 não tem nenhuma relação com o anjo caído que depois foi elevado a inimigo de Deus e personificação do mal.
Uma verdadeira confusão dos diabos foi gerada pelo destino que o nome latino Lúcifer teve depois de sucessivas traduções da Bíblia.
Hoje em dia, é mais fácil associar o termo a ficções de terror ou bandas metaleiras do que a uma figura de culto dentro da própria fé cristã.
Você sabia?
Originalmente, Lúcifer significa "portador da luz" -em latim, é a junção de lux (luz) e o verbo ferre, que pode ser traduzido como "levar, portar".
Na mitologia romana, Lúcifer era o filho de Aurora, a deusa do amanhecer. Por isso, seu nome batizou a estrela que aparecia no horizonte durante a alvorada. Já a estrela que surgia à tarde era chamada de vesper, vocábulo que deu em português a palavra "vespertino".
Só séculos depois os astrônomos se deram conta que as duas luzes, na verdade, eram do mesmo astro e o batizaram de Vênus, o planeta vizinho à Terra.
Também entre os mitos da Grécia Antiga, o nome desse semideus e, consequentemente, dessa estrela da manhã era Phosphoros e teve uma trajetória bem mais tranquila que sua versão romana: virou o elemento químico e o palito que, atritado, cria fogo.
As desventuras da palavra lúcifer começaram com São Jerônimo. Ele foi o autor no século 4 da Vulgata, a primeira versão da Bíblia em latim - transposta do hebraico, aramaico (Velho Testamento) e do grego (Novo Testamento).
O termo Lúcifer aparece três vezes nessa tradução. Em uma delas, inclusive, se refere a Jesus, em uma metáfora que o compara com a luz do amanhecer - isso acontece em trecho da Segunda Epístola de Pedro.
Em outra parte, no livro de Isaías, surge traduzindo o termo hebraico "heylel", a estrela d`alva, para descrever uma queda do céu. Nesse trecho, o profeta está se referindo ao rei da Babilônia, local que os judeus associavam com características demoníacas por ser politeísta.
Mas a versão que disseminou Lúcifer como sinônimo do senhor das trevas foi a Bíblia do Rei Jaime 1 (King James Version). Essa tradução para o inglês, autorizada pelo regente britânico do século 17, é a principal fonte para a Igreja Anglicana -tornando-se depois a mais popular entre os protestantes até hoje.
Vale lembrar que o temeroso rei Jaime 1 foi o regente que promoveu a maior caça às bruxas na Inglaterra e via agentes diabólicos por todos os lados.
O mal e seus nomes
A palavra satã (e sua derivação satanás) vem do hebraico shaatan e denota "o adversário" e "o destruidor". Por seu lado, o diabo tem origem na Grécia com o termo diabolos e quer dizer "o que desune". Já demônio surge do conceito grego daimón (força, impulso), mas já em sua versão latina (daemonium) ganha a carga negativa de "força do mal".
Em português, então, os termos pejorativos formam um diabo a quatro: coisa-ruim, cão-tinhoso, besta-fera, sete-peles, rabudo, cramulhão, capeta, capiroto e por aí vai.

Diferentemente de todos esses, Lúcifer tem um significado muito radiante, lembrando que as religiões monoteístas ocidentais associam o dia e a luz à bondade, e a noite e a escuridão à maldade.
Na região que atualmente é a Itália, Lucifero era um nome e um sobrenome como outro qualquer. Além do religioso de Cagliari, o bispo de Siena à época também se chamava Lucifero.
Outro exemplo: Lucifero é uma família nobre do sul da península, com muitos barões, bispos e prefeitos na região desde o século 14.
Com seu novo significado maléfico vindo da tradução inglesa e influenciando traduções mais recentes da Bíblia, esse nome foi caindo em desuso entre os italianos, mas ainda há exemplos recentes: Lucifero Martini (1916-2001) foi um escritor, poeta e jornalista italiano nascido em Florença. E muitos homônimos na Itália preferiram e preferem ser chamados de Lúcio para evitar uma má impressão.
Um santo peculiar
Construída entre 1646 e 1682, a igreja de São Lúcifer reúne em 20 de maio os fieis do santo. Apesar da devoção local, ele nunca foi canonizado pelo Vaticano.
Lúcifer de Cagliari viveu em um período em que o cristianismo deixou de ser perseguido pelas autoridades do Império Romano (Constantino 1 se converteu em 313), mas só dez anos após sua morte a religião se tornou oficial, por decisão de Teodósio 1 no ano 380.
Também era uma época em que o dogma da Igreja era muito discutido e havia muitas heresias e concílios para tentar controlá-las.
Lúcifer foi um crítico do arianismo, crença que negava a divindade de Cristo, que teria só uma dimensão humana. Por defender a ortodoxia católica do caráter divino do filho de Deus, o santo acabou sendo exilado pelo imperador Constâncio 2, um defensor dos bispos arianos.
Lúcifer partiu para a Síria e o Egito e só voltou à península itálica com o indulto do seguinte soberano, Juliano, que também autorizou a reintegração dos religiosos da vertente ariana. Lúcifer foi contra esse perdão imperial aos adeptos do arianismo e acabou voltando para a Sardenha, sua ilha natal, com outros religiosos que seguiam suas ideias.
Por esses rachas internos no catolicismo, sua canonização não foi adiante apesar dos seguidos pedidos de bispos e crentes sardos após a sua morte no ano de 370.
No ano de 1641, em meio a novos pedidos de beatificação, o papa Urbano 8º decretou a proibição da discussão em público da santidade de São Lúcifer até uma nova decisão da Santa Sede, que não veio até nossos dias.
Apesar do decreto papal, nos anos seguintes foi erguida a igreja para Lúcifer, justo onde se encontrou a sepultura do santo. A edificação fica bem próxima da basílica de São Saturnino, o patrono de Cagliari, perto do porto da cidade.

Os monges dominicanos e os frades trinitinos cuidaram da igreja por mais de um século, de 1693 até 1803. Depois o local foi usado como orfanato e asilo, até que no século 20 voltou a ser igreja com uma paróquia autônoma.
Hoje em dia, uma das atrações turísticas de Cagliari, além das praias, é seu "tour subterrâneo", visitando as criptas, sepulturas de mártires e túneis escavados na rocha calcária típica da região. Nesse passeio, há sempre uma passadinha pelas galerias escuras que levam à tumba de São Lúcifer.
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