Hildegard von Bingen: santa do lúpulo manjava de cerveja e orgasmo feminino

Quem estuda um pouquinho da história da cerveja, dos sumérios e egípicios até nossos dias, já deve ter topado com o nome de Hildegard von Bingen em suas leituras. Para cervejeiros fervorosos, ela é a divindade maior, a "santa do lúpulo", a quem se deve rezar para garantir uma boa brassagem ou para que não falte bebida.

A fama é compreensível: a monja Hildegard, nascida em 1098 na Renânia, oeste da Alemanha, é reconhecida como a primeira autora a citar o lúpulo, botânico que dá amargor e conserva a cerveja, na obra "Physica", escrita entre 1150 e 1158. Quem lê ou ouve as coisas de orelhada costuma dizer que ela "descobriu" o lúpulo. Só que não é bem assim.

Se a questão é de fé, coloque mais um santo no altar. Adelardo de Corbie, monge francês, padroeiro dos jardineiros e dos agricultores, enumerou algumas obrigações dos frades beneditinos de seu convento, num texto de 822. Uma delas era fornecer um décimo da colheita do malte e do lúpulo ao porteiro da abadia, responsável pela produção da cerveja.

O ineditismo de Hildegard, três séculos depois de Adelardo, foi ter descrito a função conservante do lúpulo na bebida, coisa muito diferente de tê-lo descoberto. E, para a tristeza de seus devotos menos avisados, a monja alertava para alguns efeitos nocivos da florzinha amarga no nosso corpo. De acordo com a santa, o lúpulo deixava o cabra meio jururu.

"O lúpulo não é muito útil ao bem-estar do homem, porque faz a melancolia crescer, deixa a alma do homem triste e faz pesar seus órgãos internos. Porém, como resultado de seu próprio amargor, evita certas putrefações das bebidas, às quais deve ser adicionado, e assim elas podem durar muito mais tempo", escreveu.

Hildegard tendo uma de suas visões --que estudiosos modernos atribuem à enxaqueca crônica que a atacava
Hildegard tendo uma de suas visões --que estudiosos modernos atribuem à enxaqueca crônica que a atacava Imagem: Getty Images

Ela gostava mesmo era de cerveja com folhas de freixo

Contra o baixo astral, Hildegard indicava uma receita à base de aveia e gruit, mistura de ervas comum naqueles tempos, que variava de acordo com os botânicos de cada região. Zimbro, canela, alecrim, sálvia, gengibre, artemísia, mil-folhas e a picante mírica eram algumas das espécies usadas para temperar a cerveja e equilibrar o dulçor de sua base maltada. Hilde era fã do freixo.

"Se você também deseja fazer cerveja com aveia sem lúpulo, mas apenas com gruit, deve fervê-la depois de adicionar um número muito grande de folhas de freixo. Esse tipo de cerveja purga o estômago do bebedor e torna seu coração leve e alegre", recomendou a religiosa.

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Outro mito que envolve Hildegard von Bingen é o de que ela própria teria sido mestre-cervejeira. Adoraríamos acreditar nisso piamente, mas não há documento que prove a destreza da santa no comando das panelas de brassagem.

O historiador da cerveja Martyn Cornell, no entanto, acredita que sua obra deixa indícios suficientes de que ela manjava a técnica de fazer cerveja (com ou sem lúpulo) e é de se supor que tenha colocado a mão na massa (ou melhor, no mosto). Suposição com base em sua história de mulher curiosa, fazedora e perguntadeira.

A primeira a descrever o orgasmo da mulher

Hildegard von Binghen não é celebrada apenas pela tribo cervejeira e pelo povo da botânica (descreveu as propriedades de diversas espécies, não só do lúpulo). Feministas, profissionais de saúde, cientistas, ambientalistas, teólogos e músicos também reconhecem sua importância e seu pioneirismo. É dela a primeira descrição conhecida do orgasmo feminino.

"Quando uma mulher faz amor com um homem, uma sensação de calor em seu cérebro, que traz consigo deleite sensual, comunica o sabor desse deleite durante o ato e provoca a emissão da semente do homem. E, quando a semente cai em seu lugar, aquele calor veemente que desce de seu cérebro atrai a semente para si e a mantém, e logo os órgãos sexuais da mulher se contraem, e todas as partes que estão prontas para se abrir durante o período da menstruação agora se fecham, da mesma forma que um homem forte aperta algo em seu punho fechado", descreveu a monja.

Sua história foi peculiar e avançada para a época, dada a posição inferior da mulher na Europa do século 12 e em séculos subsequentes. Como décimo rebento da família, Hildegard nasceu predestinada a ser confiada à igreja - assim mandava a tradição.

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Aos 8 anos, foi entregue aos cuidados de Jutta von Sponheim, mestra em um claustro de monjas no mosteiro beneditino de Disibodenberg. Em 1114, fez seus votos definitivos e ingressou na ordem.

Acredita-se que tenha desenvolvido seus conhecimentos de medicina atendendo a gestantes e doentes que acorriam ao mosteiro.

Desse contato com o povo, talvez tenha vindo seus saberes sobre a sexualidade humana. Ou é de se imaginar que tenha tido experiências próprias, porém nunca relatadas.

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Imagem: Getty Images

Ela dizia ouvir a voz de Deus e previu catástrofes da natureza

O fato é que viveu em relativa clausura e anonimato até chegar à casa dos 40 anos. Dizia não ter tido uma educação muito esmerada, mas a obra caudalosa que escreveria durante a segunda metade de sua vida (chegou aos 81) prova o seu autodidatismo.

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Hildegard não via o papel da mulher em seu tempo como satisfatório. Fez alegorias em que Deus era a figura de uma mãe amamentando a humanidade e a criação. Sua visão da medicina tinha caráter holístico, acreditava na união indissolúvel do homem com a natureza. Não se formou médica, no entanto, pois o ensino era vetado para mulheres.

Em uma de suas visões, apregoou que a profanação da natureza faria com que ela se voltasse contra o homem. Não deu outra: aquecimento global, descontrole do efeito estufa e outras catástrofes modernas podem ser creditadas na conta de profecias de von Bingen.

Sim, Hildegard tinha visões, que estudiosos modernos atribuem à enxaqueca crônica que a atacava ou a uma espécie de neurose histérica. Em 1141, um desses chamados, que ela acreditava virem diretamente de Deus, ordenou que escrevesse o que via e ouvia. Os escritos chegaram ao conhecimento do Papa Eugênio III, que deu aval ao seu pensamento teológico.

A aprovação papal fez de Hildegard uma celebridade na Europa da Idade Média, fato incomum para uma mulher da época. Ela viajou pela Alemanha e parte da França pregando a doutrina cristã em público —a única mulher na história medieval a fazê-lo. Tida como milagreira, só foi canonizada oficialmente em 2012, junto com o reconhecimento de doutora da igreja.

Em vida, sua obra foi aceita pelos teólogos da Universidade de Paris, uma das mais antigas instituições de ensino superior da Europa, inaugurada em 1170. A essa altura, também atendendo ao chamado de uma visão, já havia criado seu próprio mosteiro, em Bingen am Rhein (daí a alcunha von Bingen).

Lúpulo in natura, planta da qual Hildegard foi considerada 'a santa'
Lúpulo in natura, planta da qual Hildegard foi considerada 'a santa' Imagem: Getty Images
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Há quem defenda a tese de que Hildegard foi mesmo esperta. Numa época em que não se ouvia a voz da mulher para qualquer assunto considerado sério, a suposta conexão com Deus poderia abrir os ouvidos alheios.

Como se fosse pouca coisa, Hildegard von Bingen ainda compôs uma obra musical numerosa para coro feminino —evidentemente sacra, para ser cantada por freiras. Sua música ficou esquecida até 1979, quando ganhou as primeiras gravações. Lançado em 1982, o álbum "A Feather On The Breath Of God", da soprano inglesa Emma Kirkby, virou hit e fez de Hildegard estrela pop. Hoje há dezenas de gravações disponíveis.

Santo Adelardo foi canonizado em 1026, pelo Papa João 19. Hildegard von Bingen, falecida em 1179, esperaria longos séculos para ter os milagres que lhe atribuíram reconhecidos pela igreja. Apenas em 2012, sua canonização foi firmada pelo Papa Bento 16, apesar de ter sido considerada santa, de maneira informal, por fiéis ao longo dos séculos.

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