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Preços lá em cima e normalidade fake: como é abrir um restaurante na Rússia

Crevette, aberto no final de julho em São Petesburgo, ainda em plena invasão russa à Ucrânia Imagem: Divulgação

Rafael Tonon

Colaboração para Nossa, do Porto (Portugal)

09/08/2022 04h00

Foi ao voltar de uma viagem de férias para aproveitar uns dias de descanso antes do turbilhão de trabalho que iria enfrentar que o casal russo Alena Melnikova e Oleg Perfilov descobriu que o sonho deles tinha quase se desfeito.

"Voltamos da Tailândia cheios de gás para abrir o nosso restaurante, mas uma semana depois, veio a 'operação especial' e nosso sócio desapareceu. Ficamos perdidos, sem saber o que fazer", conta Melnikova.

A tal "operação especial" a que ela se refere é a invasão da Ucrânia pela Rússia, que começou no dia 24 de fevereiro. Em seu país, restaurantes e cadeias internacionais de comida (como o McDonald's) fecharam as portas e encerraram as atividades definitivamente.

Em um panorama de guerra, parecia mesmo impensável abrir as portas de um negócio. "Pensamos em voltar para a Tailândia, ou até ir para Dubai, mas não conseguimos nenhum possível acordo", ela conta. "As pessoas não pareciam estar de portas abertas".

Cena russa em crescimento

Alena Melnikova e Oleg Perfilov Imagem: Divulgação

Melnikova foi durante 6 anos sócia e gerente de operações do The Repa, restaurante oficial do famoso teatro Mariinsky, em São Petersburgo. Perfilov era chef na altura quando se conheceram e começaram a namorar. Em dezembro de 2021, decidiram sair do restaurante para abrir algo entre os dois.

A cena gastronômica na segunda maior cidade da Rússia vinha crescendo muito nos últimos anos: restaurantes de cozinhas do mundo todo, chefs locais criando novos projetos de identidade nacional. Mas a guerra na Ucrânia colocou tudo em suspenso.

"Passamos meses procurando parceiros aqui sem nenhum sucesso. As pessoas estão tão estressadas que ninguém quer investir, e eu realmente as entendo", conta Melnikova.

Depois de quase desistir, ela e o namorado encontraram um ponto no bairro de Brusnitsyn com 100 metros quadrados e vista para o Golfo da Finlândia que parecia perfeito para o conceito que tinham pensado: foco em frutos do mar e vinhos, em um ambiente mais informal para não mais de 40 pessoas.

Rasparam toda a poupança e decidiram abrir o Crevette, um bistrô com estilo francês e ingredientes russos, no final de julho, depois de um mês e meio de pequenas remodelações e adaptações.

Oleg Perfilov em ação Imagem: Divulgação

Última chance?

"Temos a sensação permanente de que estamos pulando no último vagão de um trem que está saindo", diz ela sobre o sentimento de abrir um restaurante nesse momento na Rússia.

Tivemos que comprar e estocar muita coisa porque os prazos para receber os pedidos estão ridículos", desabafa ela.

Até mesmo o enxoval do restaurante foi prejudicado com a fuga de fornecedores da Rússia Imagem: Divulgação

O enxoval do restaurante e as louças tiveram que ser pedidos com muita antecedência.

Se antes as compras levavam de 3 a 4 semanas, ela explica, agora levam de 3 a 4 meses. "Muitas coisas vêm de fora, e com as fronteiras fechadas ficou inviável", afirma. Agora que a Rússia reabriu as fronteiras com a Finlândia e a Estônia em junho, ela estima que isso deve melhorar.

Para a decoração, os móveis tiveram que ser comprados em comércios vintage e de segunda mão, assim como artigos de decoração. "Lojas como [a sueca] Ikea fecharam as portas por aqui, então tudo ficou mais difícil de encontrar", diz.

Preços exorbitantes e a vez do "local"

Mas o maior baque foi nos preços dos alimentos: no mínimo 30% mais caros, segundo Melnikova. O salmão, por exemplo, teve um aumento de 300%. "De peixe, temos muita truta local, mas outros peixes vêm da Noruega ou das Ilhas Faroe, que não exportam mais pra cá", ela explica.

Crevette sofre com preço dos importados Imagem: Divulgação
Prioridade agora é para itens locais Imagem: Divulgação

Por isso, o menu do Crevette (camarão, em francês) conta com o crustáceo como ingrediente principal. Eles trabalham com camarões e lagostins locais (como os do Lago Ládoga, o maior do território europeu), além dos caranguejos Kamchatka gigantes.

"Usamos diferentes camarões, da Crimeia à Argentina. Eu mesmo selecionei os fornecedores, já que o bistrô é pequeno e podemos nos dar ao luxo de trabalhar com pequenas fazendas", acrescenta o chef Perfilov.

Outros frutos do mar ainda chegam da Ásia, América do Sul e Turquia. Os vegetais usados no menu vêm do Noroeste do país.

Finalmente temos uma razão para trabalhar com produtos locais. Temos que ver algo bom nisso tudo", diz.

A produção de queijos e carnes têm melhorado muito no país, assim como a produção de legumes e hortaliças.

Trata-se de um processo iniciado desde 2014, quando a Rússia impôs um embargo aos produtos ocidentais, obrigando fabricantes e agricultores do país a produzirem para garantir plenamente o mercado — o que curiosamente ajudou a fomentar a gastronomia local.

Fingir que está tudo bem

Russos no Crevette: fingir que tudo está bem Imagem: Divulgação

"Os restaurantes russos estão muito focados nos produtos nacionais como nunca antes", Melnikova explica. Ainda que muitos produtos estrangeiros, de foie gras a jamón, possam ser comprados no mercado negro. "Acho que é a hora de olhar para nossos ingredientes, encontrar algo novo e desenvolver conceitos que funcionem nessas situações", aposta.

Os russos têm sido obrigados a fazer um movimento de centralização, à medida que ficam mais isolados do mundo.

Hoje, as pessoas também querem sair pra comer, pelo menos para fingir por algumas horas que está tudo bem", ela diz.

O Crevette tem tido bastante público desde que abriu as portas. "Somos muito gratos a todos os amigos de toda parte do mundo que cuidam de nós, sempre perguntam como estamos. Nós estamos bem. Continuamos em pé e andando em frente", diz.

Alimentar as pessoas já é uma tarefa desafiadora, mas tem sido ainda mais difícil com tudo o que está passando em seu país, ela diz. "Mas tudo passa, isso também vai passar", acredita. "Torço para que seja mais rápido do que esperamos"

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