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Projeto em uma das estradas mais lindas do Brasil gera polêmica em SC

O projeto para o Complexo Turístico do Mirante da Serra do Rio do Rastro inclui shopping, bondinho e estação de esqui artificial - Divulgação
O projeto para o Complexo Turístico do Mirante da Serra do Rio do Rastro inclui shopping, bondinho e estação de esqui artificial
Imagem: Divulgação

Eduardo Vessoni

Colaboração para Nossa

27/07/2022 04h00

Tão sinuosa quanto a clássica Las Caracoles, na Argentina ao Chile, a via que corta a Serra do Rio do Rastro, no sul de Santa Catarina, é considerada uma das mais bonitas do Brasil.

Conhecido oficialmente como SC-390, o trecho entre os municípios de Lauro Müller, na parte inferior da estrada, e Bom Jardim da Serra é famoso por suas subidas íngremes e pela temida sequência de curvas fechadas ao lado de penhascos.

Mas, desde que o estudo da empresa Vallya Advisors Assessoria Financeira Ltda foi selecionado para as bases de um futuro edital de concessão de uso do local, empresários do setor e a população da região andam preocupados com o atrativo.

A proposta para o Complexo Turístico do Mirante da Serra do Rio do Rastro prevê, ao longo de 30 anos, um investimento de quase R$ 120 milhões e sugere, entre outros serviços, pista externa de patinação no gelo, estação de esqui artificial e um bondinho sobre a estrada, cujo valor pode chegar a US$ 30 milhões.

O projeto também inclui pista de patinação e domos para selfies com 'neve' - Divulgação - Divulgação
O projeto também inclui pista de patinação e domos para selfies
Imagem: Divulgação

"O projeto vencedor não respeita a grande protagonista, que é a própria Serra do Rio do Rastro. Até onde ficamos sabendo, é uma estrutura agressiva, arquitetonicamente falando", avalia Benito Sbruzzi, presidente do Conselho Municipal de Turismo (COMTUR) e diretor de turismo do município de Bom Jardim da Serra.

Para ele, faltou um olhar técnico, pois o projeto vencedor foi avaliado apenas pela entrega de documentos e não respeita a harmonia entre a arquitetura e a natureza.

O novo complexo ocuparia a área do atual mirante, com vista para a Serra do Rio do Rastro - Divulgação - Divulgação
O novo complexo ocuparia a área do atual mirante, com vista para a Serra do Rio do Rastro
Imagem: Divulgação

Tem que ser algo viável e que não seja depois um elefante branco. A gente quer o desenvolvimento, mas que também sejam respeitadas a nossa história, a nossa cultura e a serra" Benito Sbruzzi

Benito acredita que o projeto ideal é aquele com uma arquitetura que não compita com o entorno, distorcendo a paisagem.

Outro lado

O estudo selecionado pelo Governo de Santa Catarina, no final do ano passado, faz parte do PMI (Procedimento de Manifestação de Interesse), instrumento de intenção de obter subsídios junto à iniciativa privada para uma determinada parceria. O procedimento é uma das etapas que antecedem o processo de licitação para investimento e exploração do local.

No projeto, uma nova área de lazer, com acesso via bondinho, abrigaria cabanas e restaurante - Divulgação - Divulgação
No projeto, uma nova área de lazer, com acesso via bondinho, abrigaria cabanas e restaurante
Imagem: Divulgação

Procurada por Nossa, a empresa vencedora explicou que se trata de um projeto referencial, ou seja, é uma sugestão que "potencializa os pontos de contemplação da serra, ampliando a experiência dos visitantes".

"Entendemos que o local tem um potencial turístico imensurável, atraindo visitantes locais e turistas de todo o Brasil. Para sua concretização, prevê-se um amplo plano de investimento na infraestrutura local", explica Maurício Taufic Guaiana, um dos sócios da Vallya.

Para Nelma Baldin, autora do livro "Uma Serra com História: A Serra do Rio do Rastro", lançado em 2020, a proposta apresentada não inclui um resgate da história desse atrativo natural e não tem uma proposta que contemple áreas como educação ambiental.

É um projeto que visa, única e exclusivamente, o lucro. Para mim, esse tipo de exploração turística é prejudicial para a serra e eu não concordo com ele" Nelma Baldin

Por outro lado, Maurício afirma que o projeto tem amplo apelo histórico e contempla até um museu e área para exposição do artesanato da região.

Projeto Serra do Rio do Rastro - Divulgação - Divulgação
Imagem do projeto indica pista de patinação, domos e bondinho no complexo
Imagem: Divulgação

Segundo os Estudos de Arquitetura e Engenharia a que Nossa teve acesso, o atual mirante se encontra em uma Área de Preservação Permanente, na borda da Serra do Rio do Rastro.

Por isso, é recomendado no processo de elaboração do edital o mapeamento dessas áreas para uma eventual necessidade de regularização de APPs já ocupadas e a "compatibilidade das ocupações futuras em relação aos usos e enquadramentos permitidos pela lei".

O mesmo estudo aponta que o atrativo "ainda carece de infraestrutura básica e turística", como sinalização no estacionamento, e limpeza e insumos de higiene adequados nos sanitários que, atualmente, são pagos pelos usuários.

Projeto Serra do Rio do RastroO complexo turístico ocuparia um dos pontos mais privilegiados da Serra do Rio do Rastro, com concessão privada de 30 anos - Divulgação - Divulgação
O complexo turístico ocuparia um dos pontos mais privilegiados da Serra do Rio do Rastro
Imagem: Divulgação

O projeto também sugere um shopping, mirantes contemplativos e um núcleo de hotelaria rural com 42 unidades e diárias de até R$ 600.

Uma das críticas que o diretor de turismo Benito Sbruzzi apontou para a reportagem é a proposta de construção de um estacionamento subterrâneo numa rocha basáltica.

A Vallya lembra, porém, que seu projeto foi feito por uma equipe com "ampla experiência com projetos de parques naturais" e que, entre as sugestões para o futuro concessionário, não faz nenhuma menção a um estacionamento do gênero.

Com relação à educação ambiental, prevê-se, contratualmente, que um percentual da receita operacional bruta do concessionário seja revertida para os chamados Macrotemas, como educação ambiental e empreendedorismo.

Segundo Benito, nesta semana a população planeja uma reunião para levar esses e outros questionamentos para a administração da região.

Entre as estradas mais bonitas do mundo

A via sinuosa que corta a Serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina, já foi considerada uma das 10 mais cênicas do mundo - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
A via sinuosa que corta a Serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina, já foi considerada uma das 10 mais cênicas do mundo
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Atualmente, a estrada da Serra do Rio do Rastro pode ser vista de um mirante localizado em Bom Jardim da Serra, equipado com estacionamento, banheiros públicos, guarda-corpo metálico, quiosques que vendem bebidas e lanches rápidos, e a Associação Bom-jardinense de Artesãos.

É nesse ponto estratégico a 1.460 metros de altitude que o visitante entende por que a estrada foi incluída pelo The Guardian, em 2015, na lista das 10 mais cênicas do mundo.

Na definição do jornal britânico, é "uma rota absurdamente cheia de curvas que passa por cachoeiras, cânions e paisagens espetaculares do início ao fim".

Cheia de curvas, a Serra do Rio do Rastro é um desafio ao volante, mas compensa com belas vistas - Getty Images - Getty Images
Cheia de curvas, a Serra do Rio do Rastro é um desafio ao volante, mas compensa com belas vistas
Imagem: Getty Images

Só para ter uma ideia da experiência, os seis ziguezagueantes quilômetros que rasgam as montanhas, em meio às encostas da Serra Geral, têm 284 curvas e seu topo oferece uma vista de até 100 quilômetros de distância, nos dias de céu limpo.

Atualmente, a serra é um dos principais atrativos da Serra Catarinense.

"É nossa via de escoação da produção agropecuária, principalmente, maçã e gado. Mas tem turistas que visitam a região só para subir ou descer a serra", conta Benito.

Como é dirigir na Serra do Rio do Rastro

Linda e cenográfica, a SC-390, porém, exige atenção ao volante.

Essa estrada de pista estreita não permite ultrapassagem, pois em muitos trechos não é possível visualizar os veículos no sentido contrário.

A estrada não permite ultrapassagens e em dias de neblina o cuidado deve ser redobrado - Getty Images - Getty Images
A estrada não permite ultrapassagens e em dias de neblina o cuidado deve ser redobrado
Imagem: Getty Images

"Apesar de ser um trecho sinuoso com tráfego de caminhões e vans, é uma estrada muito segura para ir contemplando o visual. Não tem mistério, é só dirigir com atenção e em baixa velocidade", sugere Benito.

Ele lembra também que o período da manhã é melhor para pegar a estrada, já que as tardes de verão são marcadas pela forte neblina que se forma por ali.

Já os meses de inverno costumam ter céu mais claro, durante todo o dia. Mas é nesse período que as temperaturas negativas ou geadas podem causar o fechamento temporário da estrada para que sal seja colocado no asfalto, a fim de evitar pontos de congelamento.

Geada congela trechos de estrada na Serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina - Polícia Militar Rodoviária de Santa Catarina - Polícia Militar Rodoviária de Santa Catarina
Geada congela trechos de estrada na Serra do Rio do Rastro, no inverno de 2022
Imagem: Polícia Militar Rodoviária de Santa Catarina

Apesar de ter ficado fechada por quase dois anos para obras de contenção de barreiras nos pontos críticos, entre 2019 e 2021, outro tema que preocupa é a falta de iluminação pública durante o trajeto, o que exige atenção redobrada de quem vai encarar a estrada à noite.

"Por mais que o estado tenha feito a obra, a serra ainda está meio esquecida e, desde que acabaram os trabalhos, a gente está sem iluminação na estrada", avisa Benito.

Durante o fechamento da estrada, a viagem até Lauro Müller, a 30 minutos de Bom Jardim da Serra, era feita por outras estradas, como a SC-282, via Urubici, ou pela Serra do Corvo Branco, um desvio de mais de três horas.

"Na época, empreendimentos tiveram que fechar as portas por conta do prejuízo causado pela interdição. A Serra do Rio do Rastro é uma via de manutenção para a vida e também caminho para o litoral", descreve.

Estrada histórica

A via que corta a Serra do Rio do Rastro foi criada nos anos 1950 para facilitar a ligação entre o litoral catarinense e o planalto. Até então o que se tinha à disposição eram picadas de difícil acesso.

Mas como lembra Nelma Baldin, historiadora formada pela Universidade Federal de Santa Catarina, seu uso data do século 17, quando portugueses desciam em direção ao Rio da Prata, no Uruguai, em busca de um caminho alternativo à rota litorânea.

Serra do Rio do Rastro - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Mais tarde, a serra seria usada ainda como passagem dos índios Xokleng, que na época desciam para o litoral em busca de áreas mais quentes, durante o inverno.

"Até o início do século 20, era conhecida como uma serra cheia de perigos", descreve a historiadora.

Nelma conta que a região era chamada de Serra do Tubarão, em referência ao rio homônimo que nasce em Lauro Muller, no pé da Serra do Rio Rastro, cujo nome foi dado devido à água escassa que escorria como um rastro, no período de seca.

A estrada foi usada também pelos tropeiros que saíam do Rio Grande do Sul para levar gado para as feiras do interior de São Paulo.

"Embora fosse mais difícil, era um caminho mais curto do que seguir pelo mar", finaliza Nelma.