6 homens, um papagaio e a incrível travessia de jangada do Peru à Polinésia
Eduardo Vessoni
Colaboração para Nossa
06/07/2022 04h00
No último jantar anual do Clube dos Exploradores, em Nova Iorque, o menu exótico de insetos acompanhava um guia de sobrevivência com recomendações como "Siga os noruegueses". Os fãs da literatura de viagens não demoraram para entender a sugestão.
Daquele país nórdico saíram nomes de respeito como Roald Amundsen, líder da primeira expedição no Polo Sul, em 1911, e o persistente Thor Heyerdahls, que não tirava da cabeça a ideia de que a Polinésia tinha sido povoada por povos da América do Sul.
Em 1947, a bordo de uma jangada de madeira, Thor, outros cinco homens e um papagaio dado de presente ainda em Lima viajaram cerca de 8 mil quilômetros, por mais de dois meses, entre a costa do Peru e aquele distante conjunto de ilhas do outro lado do oceano Pacífico.
"Além de provar que o 'homem primitivo' realmente podia navegar por oceanos profundos muito mais cedo do que acreditávamos, foi uma das histórias do pós 2ª Guerra Mundial a trazer esperança às pessoas" Reidar Solsvik, curador do Museu Kon-Tiki, em Oslo, na Noruega, em entrevista para Nossa.
A expedição receberia o nome em homenagem a Kon-Tiki Viracocha, "deus criador" andino que teria navegado até "onde o sol se põe no oeste", há 1.500 anos.
Acompanhados também do caranguejo Johannes, que pegou carona na embarcação, os viajantes navegaram um dos mares mais invocados do planeta para provar aquilo que ninguém acreditava ser possível.
Expedição desacreditada
Desde a temporada com a esposa em Fatu Hiva, nas Ilhas Marquesas, dez anos antes, Thor queria provar que as ilhas do Pacífico tinham sido povoadas, primeiramente, por indígenas sul-americanos e não por viajantes da Ásia, como se pensava.
A ideia não parecia sem sentido, já que os polinésios são conhecidos pela habilidade de viajar em canoas por grandes distâncias. Porém, esse norueguês de Larvik seria posto à prova (e desestimulado) durante todo o tempo.
Outro argumento era que, antes da chegada dos europeus no continente, apenas a América tinha batatas. Mas destinos daquele extenso triângulo polinésio imaginário, que inclui o Havaí e a Nova Zelândia, já tinham batata-doce quando chegaram os primeiros colonizadores da Europa.
Para o curador Reidar Solsvik, a expedição provou que povos da América do Sul tinham tecnologia para atravessar o Pacífico e seus conhecimentos eram muito mais sofisticados do que os povos europeus acreditavam.
Certo disso, mas desacreditado por antropólogos dos Estados Unidos e pela comunidade científica em geral, Thor protagonizou uma busca insana para conseguir apoio para viajar do Peru até a Oceania em uma jangada de pau-de-balsa construída por ele mesmo.
O norueguês não desistiu. Para ele, as fronteiras não existiam, exceto na mente de algumas pessoas.
A expedição, financiada com doações privadas e do exército estadunidense, chegou a ser chamada de "ação suicida", já que especialistas acreditavam que os troncos porosos amarrados com cordas se desintegrariam em poucas semanas, quando encharcados pela água do mar.
Thor teve até que assinar um termo em que isentava a instituição de qualquer responsabilidade pela construção da embarcação em uma base naval de Callao, na região metropolitana de Lima.
Na despedida no Peru, sob olhares desconfiados de representantes de nove países, como embaixadores e ministros, a pequena tripulação recebeu até uma bíblia para os dias de travessia.
A viagem seria marcada por furacões, rajadas de ventos e ondas furiosas que pareciam uma montanha-russa no mar.
Kon-Tiki
Inspirada em construções pré-colombianas, a jangada sem pregos nem cabos de arame foi feita com toras adquiridas nas florestas de Quevedo, no Equador.
Por 101 dias, seu mundo na imensidão oceânica se resumia a nove troncos de balsa amarrados com cânhamo sob uma cobertura de taquara de 2,4 x 4,20 metros com uma esteira de bambu trançado. Na medida do possível, aquele era o único refúgio contra o frio e a fúria do Pacífico.
Na bagagem, a tripulação levava provisões como rações militares, cestos de vime com frutas e mais de mil litros de águas acondicionadas em latões. A jangada ainda teria lugar para 73 livros científicos de um dos tripulantes.
Durante semanas, não tiveram um sinal sequer de que havia mais gente no mundo, "nem de navio nem de qualquer outra coisa que navegasse".
O banheiro a céu aberto ficava em uma das extremidades das toras da proa da jangada, e o fogareiro amarrado no convés era usado para preparar os peixes pescados em alto-mar ou os que vinham pelo ar, como os peixes-voadores.
Morrer de fome era impossível", escreveu Thor no livro "A expedição Kon-Tiki".
Para se proteger de um possível ataque dos "polvos monstruosos" da corrente de Humboldt que poderiam entrar na jangada, a tripulação costumava dormir junto a facões.
Apenas Erik Hesselberg tinha conhecimentos marítimos e foi o criador de um cesto de imersão feito com corda e bambu para reparos na jangada, protegendo assim o mergulhador dos constantes tubarões que rondavam a embarcação.
A viagem terminaria com sucesso no dia 7 de agosto de 1947, quando a Kon-Tiki colidiu violentamente com o atol Raroia, em Tuamotus, encalhando em uma ilhota desabitada.
Esse arquipélago na Polinésia é considerado a maior cadeia de atóis do mundo e é temido por seus "traiçoeiros recifes submersos", segundo descrição de Thor.
Era uma embarcação naufragada, mas com muita honra. Tudo o que estivera por cima do convés foi destruído, mas os nove troncos de pau-de-balsa estavam intactos", descreveu o norueguês em seu diário.
Como lembra o curador do museu dedicado à expedição, desde os anos 50, Kon-Tiki é sinônimo de aventura e até hoje inúmeras marcas usam seu nome.
"Diariamente, a experiência de Thor e sua coragem inspiram as pessoas de todo o mundo. Em busca de conhecimento, ele nos inspira a viajar pelo mundo, quebrando barreiras e acreditando em nós mesmos", conclui.
Viajante sem fronteiras
Embora a Kon-Tiki seja sua viagem mais conhecida, Thor Heyerdahls realizou outras expedições, ao longo de mais de cinco décadas.
A primeira foi em 1937, aos 22 anos, quando o norueguês e a esposa Liv passaram quase um ano em Fatu Hiva, nas Ilhas Marquesas, "sem qualquer contato com o mundo exterior", como ele mesmo descreve em seu livro.
Depois de confirmar sua teoria, cruzando o Pacífico, em 1947, Thor partiu para Galápagos (1953), onde sua expedição arqueológica descobriu fragmentos de utensílios incas e confirmou a suspeita de que povos da América do Sul teriam visitado esse arquipélago no Equador, antes de Cristóvão Colombo chegar às Américas.
Na Ilha de Páscoa (1955 e 1986), Thor concluiu que os tradicionais moais desse destino chileno na Polinésia não eram só cabeças, colecionou antigas esculturas encontradas em cavernas e provou que aquelas estátuas gigantes de pedra podiam "andar", puxadas por cordas.
Thor viajou duas vezes do Marrocos às Américas, a bordo de uma embarcação de junco, para provar a teoria de que as civilizações pré-históricas de ambos lados do oceano Atlântico teriam tido contato entre si. As duas expedições ganharam o nome de Ra e Ra II (1969 e 1970), em homenagem ao deus egípcio do Sol.
Suas teorias sobre longas travessias de povos antigos acompanharam Thor na expedição Tigris (1977 e 1978). Com 11 homens de diferentes nacionalidades a bordo, viajou 6.800 quilômetros, em 143 dias, em uma embarcação de junco, do atual Iraque ao Djibouti, no nordeste da África, passando pelo Paquistão e cruzando rios e o Mar Arábico.
Nos anos 80, Thor ainda faria expedições arqueológicas às Maldivas, no oceano Índico, e ao Peru.