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Grande 'rival' do pãozinho francês, pão de cará vira patrimônio de Santos

Pão de cará, fofinho e levemente adocicado, é um clássico de Santos - Divulgação/Casaría
Pão de cará, fofinho e levemente adocicado, é um clássico de Santos
Imagem: Divulgação/Casaría

Gabrielli Menezes

De Nossa

08/06/2022 04h00

Os santistas costumam se orgulhar de costumes e gírias regionais. É trocar 'você' por 'tu', chamar 'pão francês' de 'média', se localizar pelos sete canais e pela 'linha da máquina', usar 'magrela' em vez de 'bicicleta' e comer o tal do 'pão de cará'.

Esse último vai à mesa de casas do Emissário à Ponta da Praia no desjejum, lanchinho da tarde ou jantar. Hábito herdado de outras gerações, sempre foi tratado como um patrimônio. Mas agora é oficial: nesta terça (7), o prefeito Rogério Santos (PSDB) sancionou o projeto do vereador Benedito Furtado (PSB) e registrou o pãozinho e seus saberes e receitas como patrimônio cultural imaterial do município.

O pontapé para o projeto de lei foi uma viagem a Pernambuco. "Vi a forma como eles tratam o bolo de rolo e o nosso pão de cará não fica devendo nada para isso", conta o vereador e consumidor diário da pedida. "Adoro comer no café com manteiga".

De miolo macio, casca ultrafina, sabor levemente adocicado e acabamento brilhante, o quitute é um dos poucos capazes de abalar o reinado vitalício do pão francês (opa, média!). É sempre o segundo lugar em vendas e ganha com folga do terceiro item mais desejado de cada estabelecimento. A estimativa é que, por dia, 120 mil pãezinhos do tipo saiam de fornos caiçaras.

Pão de cará - Divulgação/Padaria Arco Íris - Divulgação/Padaria Arco Íris
O pãozinho sobre o balcão da Arco Íris: clientes preferem o cará do meio
Imagem: Divulgação/Padaria Arco Íris

"Ai" da padaria santista que ousar não colocá-lo na vitrine. Ele bate cartão nos endereços mais antigos, como na Padaria Flor, em funcionamento desde 1930 no bairro do Macuco, e nas mais moderninhas.

Com onze meses de vida na Avenida Conselheiro Nébias, a Casaría divide as prateleiras entre pães artesanais e clássicos da região. "Média e cará não podem faltar em nenhuma padaria de Santos", conta o sócio Luiz Henrique Menezes.

De acordo com ele, a cada dez pessoas que pedem pão francês na fila do balcão, quatro optam pelo pão de cará. "É um número bem significativo em comparação aos demais". Alguns clientes brigam pelo pãozinho do meio da fornada. Sem as bordas tostadas pela maior exposição ao calor e o contato com a forma, as unidades ficam ainda mais fofinhas.

Pão de cará com e sem cará

Cará - Luis Echeverri Urrea/Getty Images/iStockphoto - Luis Echeverri Urrea/Getty Images/iStockphoto
Cará: tubérculo entrou e saiu da receita
Imagem: Luis Echeverri Urrea/Getty Images/iStockphoto

Apesar do nome, o produto servido na Baixada não possui cará na fórmula. E isso já faz tanto tempo que muitos duvidam se um dia o tubérculo entrou na massa. Mara Pontes, coordenadora da pós-graduação em Panificação e Confeitaria do Senac, defende que a receita nasceu com o vegetal.

Segundo ela, o cará foi usado para diminuir a quantidade de trigo. Por volta do século XX, a farinha branca era importada e ficava restrita às classes altas.

Trigo era caro e essa foi uma maneira de baratear o custo".

José Leonardo herdou a Padaria Flor do pai, que chegou a entregar pães de carroça, e se lembra de conversar sobre o assunto com os padeiros. "Eram senhores de longa data que falavam sobre a escassez de produtos como farinha durante as duas guerras mundiais".

De acordo com ele, cada família começou a dar o seu jeitinho de produzir:

Começaram a usar batata, milho e cerveja para fazer a chamada esponja e conseguir fermentar o pão, dar liga e força para a farinha escura de má qualidade. O cará cozido dava um gostinho mais adocicado".

Pão de Cará - Divulgação/Casaría - Divulgação/Casaría
Pão de cará da Casaría: sem cará
Imagem: Divulgação/Casaría

Com o passar do tempo e o desenvolvimento do trigo brasileiro e da indústria, porém, ocorreu o movimento contrário. Produtos in natura, como o cará, inflacionaram frente à farinha.

Outra barreira para a continuidade da receita foi a mão de obra. "O pão preparado com tubérculo exige padeiros qualificados. Não é uma receita fechada. Sempre vai mudar a quantidade de água e a estrutura", diz Mara.

Antônio Pires, presidente do sindicato da Panificação da Baixada Santista e Vale do Ribeira, resume:

O pão de cará virou nome próprio".

"Pó" de cará

Pão de Cará - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Pão de cará e de leite são parecidos
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Ovos, manteiga, leite, açúcar, sal, farinha, fermento biológico e água. Na teoria, esses são os itens básicos que compõem o ícone santista, que é pincelado de gema para dar brilho no topo.

Na prática, boa parte dos endereços trocam a manteiga pela margarina e adicionam melhoradores industrializados para estimular o desenvolvimento do glúten.

Uns poucos também se livram do "trabalho" de colocar ingrediente por ingrediente na masseira. "Hoje em dia, a indústria oferece até uma pré-mistura chamada farinha doce. É só pesar e adicionar a quantidade certa de água", diz Edson Pereira.

Padeiro há 12 anos, seis deles no comando dos fornos da Arco Íris, no Macuco, ele dispensa a praticidade química:

Para mim, nada substitui a boa e velha receita. Quem tem paladar mais crítico percebe diferenças de sabor, aroma e textura".

Relação afetiva subiu a serra

Pão de Cará na Big Pão, em Itaquera - Reprodução - Reprodução
Pão de Cará na Big Pão, em Itaquera
Imagem: Reprodução

Para a felicidade de santistas gulosos que vivem na capital paulista, o pão de cará subiu a serra recentemente. A receita foi compartilhada com panificadoras da metrópole num encontro do sindicato realizado em Santos, no ano passado.

"Fiquei surpreso por ser algo tradicional de uma cidade que está muito perto e ninguém de São Paulo fazer. Ao menos não chamando por esse nome", diz Fábio Moreira.

Proprietário da Big Pão, em Itaquera, ele diz que desde que incorporou o item à cartela de produtos, nota alguns clientes que nasceram ou frequentaram Santos saudadosos. "Mexe com o sentimento das pessoas, que comentam como a receita os remete a uma certa parte da vida, como as férias de infância na casa da avó na praia".

Antônio, que também é dono da Arco Íris e já viu turistas levando a pedida para a Suíça, conclui:

O pão de cará é — e agora, por direito — a comida que mais caracteriza o jeito de ser santista".