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Engenheiro cria cadeira de rodas especial para esposa escalar montanhas

O casal Juliana e Guilherme no primeiro teste da cadeira Julietti, no Parque Nacional do Itatiaia, na Serra da Mantiqueira, Rio de Janeiro - Arquivo pessoal
O casal Juliana e Guilherme no primeiro teste da cadeira Julietti, no Parque Nacional do Itatiaia, na Serra da Mantiqueira, Rio de Janeiro Imagem: Arquivo pessoal

Eduardo Vessoni

Colaboração para Nossa

06/03/2022 04h00

Este poderia ser o fim de uma história, mas foi só o começo. Se a montanha não pode vir até Juliana Tozzi, essa paulistana decidiu ir até lá. Com cadeira de rodas e tudo.

Após um câncer de mama seguido de um diagnóstico de uma síndrome neurológica rara, a engenheira começou a ter dificuldades na fala, perder a coordenação das mãos e, impossibilitada de andar, ver sua paixão de subir montanhas cada vez mais distante.

Foi então que o marido Guilherme Simões Cordeiro fez a proposta: "onde você quiser ir, eu vou te levar".

E, desde então, não parou mais. Da Serra do Cipó à Bolívia, do conforto de casa ao projeto de subir as 10 maiores montanhas do Brasil, em um programa ainda inédito para a TV, que deve passar por clássicos como o Pico da Neblina e a cobiçada Serra Fina.

A partir de sua experiência, o casal criou o projeto Montanha para Todos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A partir de sua experiência, o casal criou o projeto Montanha para Todos
Imagem: Arquivo pessoal

Essa promessa virou um objetivo de vida. A gente tem que espalhar essa ideia e trazer as pessoas com mobilidade reduzida para a natureza"

Em 2015, a equipe médica tinha mais de 30 profissionais envolvidos e a expectativa de vida de Juliana, que descobriu uma Degeneração Cerebelar Paraneoplásica no 4º mês de gravidez, era de apenas três meses.

Mas em fevereiro do ano seguinte, contrariando todos os prognósticos, o casal já encarava a primeira trilha na Pedra da Macela, entre Cunha, no interior paulista, e o litoral sul do Rio de Janeiro.

Subindo a Pedra da Macela, em 2016, primeira trilha de Juliana após o diagnóstico médico - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Subindo a Pedra da Macela, em 2016, primeira trilha de Juliana após o diagnóstico médico
Imagem: Arquivo pessoal

Primeira vez

Na caminhada de dois quilômetros por terreno íngreme, Juliana foi em uma cadeira de rodas comum puxada por uma corda até os 1.840 metros de altitude desse atrativo na Serra da Bocaina.

"Foi lindo, me marcou bastante poder ver aquele visual", diz Juliana sobre a experiência de estar nesse pico com vista de Paraty, Angra dos Reis e a baía de Ilha Grande.

Juliana com amigos na Pedra da Macela, em Cunha, São Paulo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juliana com amigos na Pedra da Macela, em Cunha, São Paulo
Imagem: Arquivo pessoal

Quem vê esse casal cheio de disposição física e um sorriso que se alarga com facilidade no rosto, pode até achar que tudo aquilo acontece sem esforço.

"Não é fácil, realmente. É trabalhoso, custoso, mas hoje a gente vive essa realidade", explica Guilherme.

Porém, ele não queria apenas sair por aí com a esposa, montanha acima. Esse também engenheiro paulistano queria dar mais conforto para Juliana e agilidade para quem os auxilia nas subidas, que por questões de segurança exigem no mínimo o apoio de outras quatro pessoas.

Na Pedra da Macela foi bem legal, mas foi bem sofrido porque as rodas da frente da cadeira ficavam batendo. Daí pensei que era hora de inventar alguma coisa"

Cadeira Juliette criada pelo engenheiro Guilherme Simões Cordeiro  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cadeira Juliette criada pelo engenheiro Guilherme Simões Cordeiro
Imagem: Arquivo pessoal

Não só imaginou como foi atrás de um modelo de cadeira adaptado para trilhas.

"Eu tinha a ideia mas não tinha conhecimento técnico, então um rapaz que fazia bicicletas para cadeirantes me ajudou a desenvolver um projeto. Foram seis meses indo todas as noites na oficina dele", conta Guilherme, que lembra que os modelos de cadeiras disponíveis no Brasil custavam, em 2015, inviáveis R$ 30 mil.

Em 12 de junho de 2016, em pleno Dia dos Namorados, nascia a Julietti. E adivinha o que eles foram fazer naquele mesmo dia?

Escalada na Serra do Cipó, em Minas Gerais - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Escalada na Serra do Cipó, em Minas Gerais
Imagem: Arquivo pessoal

Para testar o "brinquedinho" novo, o casal partiu para o Maciço das Prateleiras, cujo cume fica a 2.539 metros de altitude, no Parque Nacional do Itatiaia, na Serra da Mantiqueira, no Rio de Janeiro.

Foi maravilhoso, não podia ter sido presente melhor. Eu gosto muito de desafio e o visual não tem igual"

Entre os diferenciais estão a altura de um metro que oferece ao cadeirante um campo de visão como se ele estivesse de pé, e o uso de apenas uma roda, o que dá mais acessibilidade para a passagem da cadeira sem necessidade de intervenções como pavimentação do solo ou construção de rampas.

A partir dali, nem a imponência dos Andes seria obstáculo.

Juliana Tozzi durante trilha na Bolívia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juliana Tozzi durante trilha na Bolívia
Imagem: Arquivo pessoal

A montanha sempre foi nossa válvula de escape. Eu sou motivado pelos desafios e sempre queria subir a mais difícil, a mais alta", avalia Guilherme.

E ai se alguém disser que os Andes não são possíveis para uma cadeirante. "Daí que eu quero mesmo", desafia o marido.

E lá vão eles, Guilherme, Juliana e Julietti.

Rodinha (e esquis) nos pés

Em 2018, o casal fez uma viagem de 17 dias para subir o Acotango, um vulcão a 6.052 metros sobre o nível do mar, na fronteira entre a Bolívia e o Chile, em busca do título de primeira cadeirante no mundo a subir uma montanha com mais de seis mil metros.

O casal Juliana e Guilherme com a equipe de apoio na montanha Chacaltaya, próximo a La Paz, na Bolívia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O casal Jcom a equipe de apoio na montanha Chacaltaya, próximo a La Paz, na Bolívia
Imagem: Arquivo pessoal

Quando o montanhista Maximo Kausch propôs levar o casal para a Bolívia, ele chegou a ficar em dúvida e até questionou: "Serão que os caras são malucos?"

São, sim, Maximo. Malucos por montanhas.

O montanhista Maximo Kausch com Juliana na Bolívia - Reprodução Instagram - Reprodução Instagram
O montanhista Maximo Kausch com Juliana na Bolívia
Imagem: Reprodução Instagram

"Quando o bicho da montanha pica, você não muda mais. Eles aceitaram na hora", lembra esse montanhista que frequenta o país andino desde 2001 e foi um dos oito guias, entre brasileiros e bolivianos, envolvidos na missão.

Fizeram primeiro uma aclimatação na montanha Chacaltaya, próximo a La Paz e a mais de 5.400 metros, onde Guilherme adaptou esquis no lugar das rodas da cadeira para facilitar o transporte na neve.

"No Acotango íamos cavando alguns trechos com pás e a cadeira era guinchada por cordas. Levávamos às vezes mais de uma hora para subir 40 metros", descreve.

Outras adaptações também precisaram ser feitas, como o uso de aquecedor químico nas meias da cadeirante para evitar o congelamento das extremidades que não estavam se movimentando, e uso de um saco de dormir para envolver Juliana, além das roupas especiais para baixas temperaturas.

Equipe de guias de montanha com Juliana Tozzi no vulcão Acotango, na Bolívia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Equipe de guias de montanha com Juliana no vulcão Acotango, na Bolívia
Imagem: Arquivo pessoal

Apesar da longa caminhada de cerca de 20 horas, a nevasca e as rajadas de vento dos dias anteriores impediram a conclusão do desafio, faltando cerca de 200 metros para chegar ao cume do vulcão.

O recorde (por enquanto) não veio, mas a experiência rendeu o mini documentário "Julietti, Uma Vida nas Montanhas", premiado em festivais em São Paulo, Nova York e Deauville, na França.

A pira dela querer estar na montanha é muito inspiradora, não tem como não se envolver na causa", diz Maximo.

Mais projetos

Juliana e Guilherme parecem mesmo gostar de uma estrada, mesmo quando não estão viajando.

O casal mora em Taubaté, está construindo uma casa 100% acessível em Caçapava, tem escritório em São José dos Campos e mantém a fábrica de cadeiras de rodas em Jacareí, no Vale do Paraíba. Sem falar no motorhome que estão construindo.

O casal Juliana e Guilherme na Serra do Cipó, em Minas Gerais - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O casal Juliana e Guilherme na Serra do Cipó, em Minas Gerais
Imagem: Arquivo pessoal

Atualmente, o casal toca três linhas de frente. Além do site Montanha para Todos, estão a cargo do instituto homônimo e da fábrica da Julietti, modelo que Guilherme faz questão de dizer que já está presente em quase todos os estados do Brasil. Só no ano passado, a empresa fabricou mil cadeiras.

E isso porque nem chegamos na parte do Benjamin, o filho de seis anos do casal que já acompanha os pais nas trilhas.

Ele viaja direto com a gente, mas nossos roteiros são pensados nele também, que gosta de brincar na praia ou ficar na piscina"

No último mês de fevereiro, o casal fez também uma viagem de 20 dias de carro, rodando 8.500 quilômetros entre São Paulo e destinos do Nordeste, como Pernambuco e parte da Rota das Emoções, nos estados do Ceará e Maranhão.

"Os Lençóis Maranhenses são lindos. Eu nunca nunca tinha visto dunas nem aquele monte de areia com lagoas no meio", comemora a montanhista.

Juliana com a família em Jericoacora, no Ceará - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juliana com a família em Jericoacora, no Ceará
Imagem: Arquivo pessoal

Porém, o marido Guilherme lamenta a estrutura para cadeirantes encontrada nos destinos nordestinos por onde passaram.

"Jericoacoara atrai gente do mundo inteiro, é bem organizada e tem até taxa de conservação, mas nos becos onde bugues e quadriciclos não passam há obstáculos que não permitem passar uma cadeira de rodas", descreve.
Para ele, as prefeituras e secretarias de turismo do Brasil deveriam contratar cadeirantes para trabalhar no setor turístico.