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'Caçadora' das maiores montanhas do planeta realiza sonho no topo do mundo

Thais em La Cueva, no Aconcágua, em janeiro de 2016. Ponto de sua desistência na primeira vez - Arquivo pessoal
Thais em La Cueva, no Aconcágua, em janeiro de 2016. Ponto de sua desistência na primeira vez
Imagem: Arquivo pessoal

Sibele Oliveira

Colaboração para Nossa

08/12/2021 04h00

"Por que um sonho de infância não pode virar um projeto?', perguntou-se Thais Pegoraro, 42, durante um ensaio mental num curso de coaching. No exercício, ela se viu no Everest, sentiu o frio do cume, a emoção de estar lá e até enxergou a roupa que estava vestindo. A sensação a conectou com a menina que ela foi, que devorava livros de viagens que vinham de brinde em enciclopédias, alguns com informações sobre montanhas.

A vida de Thais tinha seguido outro rumo. Natural de Bauru, interior de São Paulo, na adolescência ela se mudou para a capital, fez faculdade de Direito e por um tempo exerceu a profissão. Depois tornou-se headhunter e foi trabalhar numa multinacional no Rio de Janeiro, onde começou a praticar esportes de aventura. Quando foi demitida, resolveu abrir uma pequena empresa de gestão de carreiras e buscou conhecimentos na área de coaching.

Então entrou no curso que lhe trouxe de volta o sonho esquecido. Para colocá-lo em prática, fez um planejamento financeiro, realizou cursos de montanhismo, de escalada em rocha e em gelo e providenciou os equipamentos necessários.

Expedição no cume do Denali (antigo Monte McKinley), em junho de 2015 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Expedição no cume do Denali (antigo Monte McKinley), em junho de 2015
Imagem: Arquivo pessoal

Rumo aos topos

Em vez de subir apenas o Everest, decidiu repetir o feito do montanhista norte-americano Richard Bass, que em 1985 selecionou as montanhas mais altas de cada continente para escalar. Mas antes de embarcar na aventura, fez um teste para saber se era capaz de se adaptar às altas altitudes.

Escolheu as montanhas bolivianas Tarija, Pequeño Alpamayo e Hauyna Potosi, menores e perfeitas para isso. Deu tudo certo.

Começou o Projeto 7 Cumes no dia 24 de junho de 2015, acompanhada de dois brasileiros. Depois o trio se juntaria a três birmaneses no acampamento e, algum tempo depois, um dos brasileiros deixaria o grupo. Ao vivo, as montanhas pareciam outro mundo, grandioso e imprevisível e difícil. Foi o que Thais constatou a primeira vez que subiu o Aconcágua.

Subida de Plaza Argentina até Campo 1, no Aconcágua, em janeiro de 2016 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Subida de Plaza Argentina até o Campo 1, no Aconcágua, em janeiro de 2016
Imagem: Arquivo pessoal

Já se aproximava do cume quando o equipamento da bota enroscou na calça e ela caiu. Como o clima ia mudar, foi obrigada a desistir.

A tentativa frustrada alterou a ordem do projeto, que no final ficou assim: Mckinley (6194 metros), na América do Norte; Elbrus (5642 metros), na Europa; Kilimanjaro (5895 metros), na África; Vinson (4897 metros), na Antártica; Aconcágua (6962 metros), na América do Sul; Everest (8848 metros), na Ásia e Pirâmide Carstensz (4800 metros), na Oceania.

Logo Thais entendeu que no mundo das montanhas, planejamento, preparo físico e emocional não bastam. É preciso lidar com os imprevistos, ter um espírito colaborativo e conviver com diferenças. Embora os hábitos dos birmaneses à mesa a incomodassem, ela compreendia que a situação era desconfortável para todos.

Brinco que um convívio de sete dias de montanha é uma amizade ou inimizade para o resto da vida. É tudo muito intenso".

Thais Pegoraro em descanso antes de atravessar a famosa Windy Corner proxima ao Campo 3, em Denal, junho de 2015 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Thais descansando antes de atravessar a famosa Windy Corner, próxima ao Campo 3, em Denali. Junho de 2015
Imagem: Arquivo pessoal

Num meio de homens, foi um desafio para Thais ser a única mulher do grupo. Era como se houvesse uma desconfiança permanente em relação a ela. Por ter menos força física, se esforçava em dobro. Também estimulava a gentileza, apaziguava os ânimos, preparava receitas e servia para os companheiros.

"No extremo do desconforto, as máscaras sociais vão sendo cuspidas do rosto e fica aquilo que é mesmo a essência", reflete. Pouco a pouco as diferenças foram diminuindo.

O verdadeiro limite

Durante a expedição, que durou um ano e nove dias, Thais viveu coisas que nunca imaginou, como voar num Boeing russo despressurizado do Chile à Antártica, uma aeronave que só transporta militares, cientistas e escaladores.

Sua rotina era cheia de contratempos. Alguns sem muita importância, como molhar as meias, furar as luvas, descobrir que a câmera fotográfica deixada fora do saco de dormir congelou ou que o chocolate que seria o lanche durante uma escalada de horas virou uma barra de gelo no bolso do agasalho.

Mas havia sustos maiores, como as fortes rajadas de vento que só não levavam a barraca porque dentro dela tinha pedras. Thais ficou apavorada com os abalos sísmicos no Alasca, que aconteciam quatro vezes ao dia.

O primeiro que vi, no primeiro dia, tive pânico. Aquela fumaça de neve e o guia falando pra gente se proteger. É um medo visceral. No primeiro você surta, no segundo já tira foto. E do terceiro pra frente, entende que é uma circunstância do local".

Thais Pegoraro no cume do Everest, em maio de 2016 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Thais Pegoraro no cume do Everest, em maio de 2016
Imagem: Arquivo pessoal

Não foi fácil Thais controlar o sentimento na cascata de gelo Khumbu, no Everest. Nela, ocorre um processo de degelo durante o dia e de recongelamento à noite, o que faz com que blocos de gelo que pesam toneladas se movimentem.

Durante a madrugada, a montanhista ouvia o barulho do deslocamento deles sem saber exatamente de onde vinha, já que havia montanhas por todos os lados. Até chorou a primeira vez subiu a cascata. Ainda assim, precisou escalá-la mais oito vezes.

Campo 4 ou South Colo: a 8000 metros, onde se avista o começo da trilha de ataque ao cume nos riscos na parede de neve Everest, maio 2016 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Campo 4 ou South Colo: a 8000 metros, onde se avista o começo da trilha de ataque ao cume nos riscos na parede de neve Everest, maio 2016
Imagem: Arquivo pessoal

Em vez de passar o Natal e o Ano Novo com a família, Thais teve que permanecer na Antártica porque o fenômeno La Niña tinha varrido a costa chilena. Não foi fácil para ela conviver com tempestades, avalanches, secas e temperaturas que chegavam a menos de 40 graus negativos. Nem lidar com restrições alimentares e falta de conforto, como usar banheiros improvisados ou ter que ficar 14 dias sem tomar banho no Alasca.

Mas o mais difícil foi resistir ao isolamento.

É muito tempo sem troca, contato físico, afeto. A gente escala sozinho o tempo todo, distante dos parceiros, sem poder conversar. 'Cordado' às vezes a 20 metros de distância do próximo participante. E passa 12 horas assim", conta Thais.

Não compensava a solidão do dia nem quando o grupo se encontrava à noite no acampamento, pois havia muito o que fazer e o cansaço tomava conta de todos.

Sustos e recorde

Mesmo se sentindo sozinha, Thais não desistiu do projeto. Até porque ali havia muito mais do que dificuldades. Estar em lugares extremos ensinou muito a ela.

"A beleza desse mundo tão vasto que são as montanhas, tão imponentes, nos dá a exata medida do que a gente é, do nosso tamanho", reflete.

Na trilha rumo à Pirâmide Carstensz, na Indonésia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Na trilha rumo à Pirâmide Carstensz, na Indonésia
Imagem: Arquivo pessoal

Aprendeu a ser paciente com as intempéries, a esperar o tempo da natureza e aceitar que nem tudo estava sob seu controle. Prova disso foi a expedição à Pirâmide Carstensz, localizada na província de Papua, na Indonésia.

Para chegar lá, o grupo levou sete dias caminhando selva adentro, guiado por índios da tribo Dani que paravam a todo momento para pedir propina, sob pena de não dar nem mais um passo. E não havia outra alternativa senão ceder, já que nem helicópteros de resgate entravam na mata fechada. A temperatura foi outro castigo, pois diferente de regiões com neve e gelo, o frio da selva era úmido.

Thais andava com a lama na altura do joelho, que acabava entrando na galocha, nas meias e roupas. O risco de hipotermia era enorme. Na volta, os índios imprimiram um ritmo mais rápido. Num dado momento, a montanhista olhou para o lado, sentiu um formigamento no rosto e perdeu os sentidos.

Era a última madrugada de viagem e faltava cerca de quatro horas para chegar à tribo. Ela recebeu um gel de carboidrato com cafeína, foi chacoalhada e sua consciência voltou.

Cume da Pirâmide Carstensz e fim do projeto - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cume da Pirâmide Carstensz e fim do projeto
Imagem: Arquivo pessoal

Terminou a expedição em junho de 2016 e soube que tinha batido o recorde sul-americano de tempo de execução do Projeto 7 Cumes. Foi a brasileira mais rápida não com o objetivo de conquistar o título, mas porque não conseguiu patrocínio e teve que bancar tudo com recursos próprios.

O desafio pandemia

Levou tempo para Thais se readaptar à rotina. "Era como se lá fosse a realidade e, aqui, a caricatura. Como se lá as emoções fossem mais verdadeiras, a vida mais rara. E aqui, um grande teatro, com relações mais plastificadas".

Depois da expedição, ela teve um filho e, no ano seguinte, voltou às montanhas. Escalou o Mont Blanc, na França, e o vulcão Cotopaxi, no Equador. Em 2020, pretendia subir a montanha Matterhorn, na Suíça, mas pôde por causa da pandemia. O mesmo aconteceu com a tentativa de escalar a Ama Dablam, no Nepal.

Só agora, em dezembro, a espera de Thais vai acabar. O destino? Pico do Orizaba, no México. Hoje ela mora em Campinas, é sócia de uma empresa, palestrante e em breve vai lançar um livro sobre o Projeto 7 Cumes. Não é a mesma pessoa de antes das expedições. "Por que deixei tantos sonhos para trás? Por que deixei a rotina me atropelar?", se questiona. Não deixa mais nenhum.