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Livro de drinques sem álcool de 1930 explica o fracasso da Lei Seca nos EUA

Polícia esvazia barris de cerveja durante a Lei Seca, nos Estados Unidos, em 1920 - George Rinhart/Corbis via Getty Images
Polícia esvazia barris de cerveja durante a Lei Seca, nos Estados Unidos, em 1920
Imagem: George Rinhart/Corbis via Getty Images

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

08/10/2021 04h00

"Coquetéis para o café da manhã, para a sala de estar, a varanda, a sala de jantar, o salão de bailes e até para o quarto das crianças. Drinques que são efervescentes e drinques quiescentes — batidos e mexidos e vacas pretas e sorvetes e frappés e apenas ponches simples — uma variedade geral. Experimente-os em sua coqueteleira!"

Parece interessante. Especialmente se o leitor ou leitora tem muitos cômodos em casa. Melhor ainda se a pessoa seguisse à risca a 18ª emenda da Constituição americana, que em 16 de janeiro de 1920 proibiu a fabricação, o comércio, o transporte, a importação e a exportação de bebidas alcoólicas.

O livro "Prohibition Punches", lançado 10 anos após a promulgação da famigerada Lei Seca dos Estados Unidos, foi uma tentativa de convencer as pessoas a andar na linha: é um livro de receitas de coquetéis 100% sem álcool.

O livro "Prohibition Punches" - Reprodução - Reprodução
O livro "Prohibition Punches"
Imagem: Reprodução

A autora, Roxana B. Doran, era esposa de James B. Doran, que ocupara o cargo de comissário do gabinete da Lei Seca. Ou seja, era uma mulher de contatos, próxima dos poderosos, e o livro enaltece isso ao compartilhar drinques sugeridos por "esposas de governadores, esposas de senadores, presidentas de clubes femininos e várias outras mulheres proeminentes na vida social, econômica e acadêmica da nação", diz o texto da orelha.

Contribuíram com seus drinques de frutas favoritos para esta coleção de coquetéis refrescantes e LEGALIZADOS."

Colaboradores de peso

Nessa lista de colaboradoras notáveis, estão Ella A. Boole e Lenna Lowe Yost, líderes do movimento da temperança (que pregava, desde meados do século 19, o banimento do álcool), a "sra. John B. Henderson" (esposa de um senador que teve papel preponderante na investigação de um escândalo envolvendo produtores de uísque, políticos e desvio de recursos), a "sra. James J. Davis" (mulher do secretário de trabalho dos EUA) e Laura Volstead Lomen, filha de Andrew Volstead, o deputado que liderou a campanha no Congresso pela efetivação da lei — por isso, ela também era conhecida como lei de Volstead.

Mulheres de Nova York em conferência pacifista em Washington. Entre elas, Ella Boole (1ª à dir.), em 1929 - Bettmann Archive - Bettmann Archive
Mulheres de Nova York em conferência pacifista em Washington. Entre elas, Ella Boole (1ª à dir.), em 1929
Imagem: Bettmann Archive

Quem assinou o prefácio, pouco antes de morrer, foi o químico Harvey Wiley. Famoso por lutar pela regulamentação da qualidade de alimentos, ele foi o primeiro comissário (o mais alto cargo), da FDA, a Anvisa americana.

"A 18ª emenda é parte permanente da nossa Constituição. Por que não reconhecer isso e voltar nossa atenção para algo que preencha nosso cálice nacional legitimamente?", escreveu Wiley. "A sra. Doran apontou o caminho para uma nova linha de pensamento em direção à atitude mental mais contida e saudável que a sociedade americana já viu desde o caótico período da Guerra Mundial."

Chama atenção o fato de Wiley precisar reforçar ao público para levar a sério a 18ª emenda. Dez anos se passaram e ela já tinha se provado um fracasso. Quando entrou em vigor, a Lei Seca fez muita gente acreditar que mazelas como a pobreza e a violência seriam erradicadas e as pessoas de fato deixariam de se embriagar.

Harvey Washington Wiley, o químico que assinou o prefácio do livro de receitas "zero" - Corbis via Getty Images - Corbis via Getty Images
Harvey Washington Wiley, o químico que assinou o prefácio do livro de receitas "zero"
Imagem: Corbis via Getty Images

Não foi o que rolou. Quem quisesse beber, bebia, pois havia jeito para tudo. Bares clandestinos, destilados caseiros perigosos feitos com alvejante ou formol, licenças falsificadas para médicos e padres a fim de obter vinho sacramental ou licores medicinais... Com tanta demanda, os mafiosos, que antes trabalhavam com jogo e prostituição, se envolveram e logo assumiram o controle desse mercado.

A Lei Seca até que fez os americanos beberem menos. Mas estavam bebendo pior. As mortes por cirrose aumentaram e as mortes violentas também, ligadas à ascensão da máfia. O apoio que a população dera à lei nos primeiros anos escoou pelo ralo tal qual os litros e litros de bebida jogados fora pelas autoridades a cada apreensão. Quando estourou a Crise de 1929, o jogo virou de vez.

Restaurante em Nova York expõe cartaz contra o consumo de álcool no local, em 1929 - ullstein bild/ullstein bild via Getty Images - ullstein bild/ullstein bild via Getty Images
Restaurante em Nova York expõe cartaz contra o consumo de álcool no local, em 1929
Imagem: ullstein bild/ullstein bild via Getty Images

Fiasco da lei

O livro foi lançado no segundo ano da Grande Depressão, período trágico da economia americana, em que uma em cada quatro pessoas perdeu o emprego. A pressão para a regulamentação das bebidas ganhou força, porque, entre outros motivos, a legalização dessa indústria geraria milhões de empregos e aumentaria a arrecadação de impostos.

Mas isso importava menos a essas ativistas e damas da sociedade preocupadas com a moral e o fígado alheios. Só que não era uma picuinha fútil, ao menos não no começo.

Sindicalistas protestam contra a Lei Seca em Newark, Nova Jersey - PhotoQuest/Getty Images - PhotoQuest/Getty Images
Sindicalistas protestam contra a Lei Seca em Newark, Nova Jersey
Imagem: PhotoQuest/Getty Images

Um dos motivos que explicam a preponderância feminina na temperança é que mulheres sempre sofreram mais com os excessos do álcool, que, não raro, resultam em violência doméstica. Além disso, a temperança era uma oportunidade para elas se organizarem politicamente pela primeira vez, como escreveu o historiador Jed Dannenbaum em um artigo no "Journal of Social History", da Universidade de Oxford, no Reino Unido. A própria Lenna Lowe Yost, uma das colaboradoras do livro, era uma liderança tanto da temperança quanto das sufragistas, as mulheres que lutavam pelo direito ao voto.

Com tantos nomes de peso, a publicação do livro ganhou destaque na imprensa. "Roxana B. Doran, há muito tempo notada na vida social de Washington e praticante das teorias pregadas por seu marido, Dr. James Doran, levou essas práticas a uma forma que não tem provocado poucos comentários", diz uma reportagem do jornal "The New York Times" de 14 de setembro daquele ano.

"A Lei Seca tirou algo do povo americano, mas nós podemos dar algo em troca", disse Doran à revista "Time" em dezembro de 1929, pouco antes do lançamento. "Mince pie [torta de frutas típica do Natal que pode levar álcool na receita] é deliciosa sem brandy, se for feita devidamente", exemplifica.

População judaica em Nova York compra vinho kosher para fins religiosos durante a Lei Seca - Getty Images - Getty Images
População judaica em Nova York compra vinho kosher para fins religiosos durante a Lei Seca
Imagem: Getty Images

O texto do "New York Times" ainda enaltece algumas das colaboradoras do livro por seu talento em bancar festas animadas mesmo sem a presença de álcool: "há receitas de famosas anfitriãs, cujos jantares e salões são não-alcoólicos, em virtude da preferência que elas têm colocado em prática sem diminuir o número de celebridades entretidas em suas casas".

Uma delas é a "Sra. John D. Henderson, moradora do 'Castelo Henderson', que esvaziou sua adega de maneira espetacular anos atrás."

A agência Associated Press também noticiou o lançamento, dizendo que a autora publicou o livro com o intuito de ser um reforço à cruzada de seu marido.

Nesse esforço, ela envolveu até a primeira-dama, Lou Henry Hoover, "que gosta de seu ponche feito com água de nascente (não mineral). Ela prefere esse adocicado sabor e, adicionado a ele, várias frutas cítricas, principalmente laranjas, limões, toranjas e frutas vermelhas."

A contribuição masculina mais relevante à lista de receitas foi enviada pelo general Smedley Butler, veterano da Primeira Guerra, que servia a seus convidados e comandados na base dos fuzileiros navais em Quantico, na Virgínia, o seguinte coquetel:

Use chá como base, com três colheres (sopa) de chá para cada litro de água. Adicione os seguintes ingredientes para cada litro:
Uma xícara de açúcar
120 ml de suco de limão-siciliano
60 ml de suco de limão
60 ml de Five Fruits (suco popular à época feito de abacaxi, laranja, limão, framboesa e morango)
Gelo
Sirva frio

Confira outras receitas do livro e suas autoras:

Ponche da Portia

"Mabel Walker Willebrandt, ex-assistente do procurador-geral (a sra. Willebrandt é conhecida como Portia, a mulher advogada)"

  • 1 garrafa de suco de uva concentrado
  • 2 garrafas de ginger ale light
  • 1 limão cortado fino
  • Meia xícara de folhas de hortelã picadas

Sirva gelado

Receitas de drinques sem álcool do livro "Prohibition Punches" - Reprodução - Reprodução
Receitas de drinques sem álcool do livro "Prohibition Punches"
Imagem: Reprodução

Ponche apimentado

"Lenna Lowe Yost, membro do Conselho Estadual de Educação da Virgínia Ocidental"

Faça um xarope base com:

  • 1 xícara de açúcar
  • 1 xícara de água
  • 1/2 colher (sopa)
  • 1/2 colher (sopa) de cravos
  • 1 e 1/2 canela em pau

Cozinhe a mistura em fogo baixo até que o xarope fique bem aromatizado. Retire os temperos e resfrie.

Adicione suco de:

  • 6 laranjas
  • 6 limões
  • 1 xícara de suco de toranja
  • 1 xícara de suco de abacaxi

Ponche de León ou Coquetel Flórida

"Sra. Henry W. Peabody - Beverly, Massachusetts. Presidente do Comitê Nacional de Mulheres para a Aplicação da Lei"

  • 2 xícaras de suco de laranja
  • 1 xícara de suco de toranja
  • Suco de 2 limões
  • 1 xícara de açúcar
  • Suco de 1 abacaxi
  • 3 xícaras de chá (aguado)

Misture em uma tigela com gelo. Antes de servir, adicione duas garrafas de ginger ale e ramos de hortelã. Sirva em copos pequenos. Para dez pessoas.

O fim

Bebedores de vinho se servem pouco depois do fim da Lei Seca americana - Bettmann Archive - Bettmann Archive
Bebedores de vinho se servem pouco depois do fim da Lei Seca americana
Imagem: Bettmann Archive

Em março de 1933, logo após assumir a presidência, Franklin Roosevelt tratou de combater a lei. Em dezembro, o Congresso a derrubou, decretando o fim de um dos maiores fiascos da história americana, comparada por especialistas à guerra às drogas ou à invasão do Iraque nos anos 2000.

Mas as receitas sobreviveram àqueles tempos estranhos. Hoje, podem ganhar mais popularidade: o mercado de produtos zero ou com pouco álcool (até cerca de 1%) deve crescer 34% até 2024, segundo o site especializado "The Drinks Business". Um refresco não faz mal a ninguém.