Cachaça, mezcal e mais: estrela dos drinques celebra os destilados latinos
O Mix está no sobrenome e não tem nada a ver com apelido inventado por conta da profissão. A norte-americana Ivy Mix, 35 anos, considerada uma estrela mixologia e dona do Leyenda, bar badalado no Brooklyn, em Nova Iorque, lançou em 2020 o primeiro livro, "Spirits of Latin America", uma declaração de amor à cultura e ao espírito que habita a produção e a degustação de álcool e destilados nesse canto de cá do mundo.
Em cinco minutos de papo já se entende o porquê de esse mulherão estar bombando na indústria de coquetéis. Ivy é cofundadora da competição Speed Rack, só para mulheres bartenders, que angaria fundos para instituições na luta contra o câncer de mama.
Ivy também acumula prêmios respeitados na indústria de bebidas. Foi eleita Bartender Amaericana do Ano em 2015 pela Tales of the Cocktail, um dos eventos mais importantes do segmento, e Mixologista do Ano em 2016, pela prestigiada revista Wine Enthusiast.
"Spirits of Latin America" (editora Ten Speed Press, disponível no Brasil pela Amazon, em inglês) marca sua estreia na velha e boa estante de livros de gastronomia e coquetelaria. A edição caprichada, com fotos lindas tanto dos coquetéis quanto dos locais visitados pela equipe, faz um retrato profundo sobre os destilados produzidos na América Latina e Central, escarafunchando a cadeia, os processos, os negócios e as injustiças do sistema.
Daí você se pergunta sobre o que mais Ivy, defensora assumida de tantos direitos, os femininos, os dos produtores latinos de bebida, o dos negros — ela se envolveu ativamente no movimento Black Lives Matter — poderia acrescentar à lista.
Minha piada é que eu sou uma bêbada feminista glorificada. Gosto de beber e gosto de apoiar mulheres"
"Spirits of Latin America" é fruto de dois anos de viagens e pesquisas pelo Peru, México, Brasil, Cuba, entre outros países das Américas, além de mais de 10 anos de relação pessoal com a cultura latina. O livro é coescrito com James Carpenter e traz fotografia de Shannon Surgis. É uma delícia de ler, de beber e de se aventurar em seu estilo meio reportagem "road trip".
Paixão latina de longa data
Nascida em Turnbridge, cidade de Vermont com cerca de 1000 habitantes, Ivy foi parar em Antigua, na Guatemala, aos 19 anos durante uma pausa da universidade. À época, buscava aprender uma nova língua e ter uma experiência fora da casinha norte-americana.
Rapidamente apaixonou-se pela cultura, pela gente, pela vibe e pelo trabalho como bartender do Café No Sé, bar local que virou ponto de encontro de ex-patriados no país. Ela passou a frequentar a Guatemala assiduamente durante as férias e a viajar pela América Central, Caribe e Latina.
Depois de formada em filosofia, Ivy morou em Buenos Aires além da Guatemala. Suas peregrinações a trouxeram para bem pertinho do Brasil, na fronteira de Foz do Iguaçu. Ali, na beirinha, foi mandada embora; não conseguiu cruzar por falta de visto.
Em 2008, fixou residência em Nova Iorque e começou a trilhar carreira como garçonete e bartender, trabalhando em locais respeitados da coquetelaria como Lani Kai e Clover Club. Em 2015, ela abriu o Leyenda, no Brooklyn, em sociedade com mais três mulheres — uma delas é sua ex-chefe Julie Reiner, lenda feminina do setor.
Nas palavras de Ivy, o Leyenda é "dedicado a celebrar a cultura da América Latina que eu me apaixonei". O bar conquistou a glória e a fama entre os bons bebedores de plantão e Ivy é hoje percebida como um dos grandes nomes responsáveis pela popularização do mezcal mexicano.
Em 2019, o Leyenda foi indicado ao James Beard Awards, uma das maiores premiações da indústria nos EUA, na categoria Melhor Bar. Em tempos desfavoráveis para a socialização etílica, o cardápio em 2020 teve de ser enxugado e rearranjando para a produção em galões com foco no takeaway. "É difícil", diz Ivy sobre as porradas decorrentes da pandemia.
Estou na indústria de hospitalidade, adoro fazer drinques, mas gosto de servir as pessoas. Adoro quando alguém entra e não sabe o que quer. Posso lançar perguntas e pensar em algo maravilhoso. Fizemos os drinques na jarra durante a pandemia, mas muda a experiência"
Beber e escrever. Ler e beber
O livro é o resultado da imersão de Ivy pela cultura latino-americana pessoal e profissional. A obra é dividida em três partes: agave, cana-de-açúcar e uva, o que representa a matéria-prima dos destilados que o livro aborda. Ainda reúne coquetéis desenvolvidos a partir deles, como Palo Negro (de rum e tequila envelhecida), Peace Treaty (pisco), Shadow Boxer (uma variação do clássico Negroni com cachaça) e Cereza Picante (com tequila e mezcal).
O relato é direto e honesto, com passagens em primeira pessoa e, inclusive, reflexões sobre o que testemunhou ou não por diferentes razões. Ela escreve:
O período de trabalho dos lavradores de cana pode durar muitas horas. Eles geralmente são mal pagos de acordo com o que colhem, e não pelas horas de trabalho. Muitas vezes, não recebem comida ou água, e muito menos sombra e descanso. Tenho que dizer que não vi essas condições nas minhas viagens"
"Na verdade, vi o oposto na maioria dos campos que visitei [...] Mas, a invisibilidade do problema é um dos aspectos mais sinistros do rum [...]", prossegue no livro.
"Eu sou uma intelectual escondida", afirma Ivy quando lhe pergunto sobre o formato, mais literário do que o tradicional livreto de coquetéis. "Fiz filosofia, adoro ler e aprender. Você vai achar muitos de nós no mundo das bebidas", diz.
"Tudo que a gente bebe, come ou toca, carrega um sistema que vem junto, além de aspectos culturais, especialmente nas Américas, construídas em cima de escravidão, morte e colonização. As bebidas e comidas são exemplos culturais de onde essas coisas são. É fundamental estudar a história e a cultura para entender as bebidas. Queria escrever sobre isso, (e também sobre) a importância e os coquetéis que se pode fazer com elas", conta.
Cachaça na fila para a popularidade do Mezcal
Da passagem rápida pelo Brasil ao longo das três semanas de pesquisa intensa pela América Latina para o livro, Ivy relembra os botecos, em especial, o Gil-Bar, em Morretes, no Paraná, de propriedade de Gilson Soares. "Amo ver como as pessoas locais bebem. Gil foi uma das melhores experiências desse tipo que tive na minha vida. Ele está a cerca de dois quilômetros da cachaçaria Novo Fogo. Fiquei horas por lá", conta.
Falando em cachaça, uma das bandeiras que Ivy carrega abertamente é sobre o envelhecimento. Para ela, há uma "fashionice", especialmente na produção de tequila e mezcal, que pode mascarar qualidade. "O não-envelhecimento traz um olhar real sobre os materiais que você está usando", ressalta.
Ela chama atenção às camadas envolvidas no método de envelhecimento, que custa caro, exige espaço, madeira e tempo parado.
A maioria dos destilados latino-americanos são brancos e transparentes, e são consumidos dessa forma. O suco da cana-de-açúcar é delicioso, fresco. Se não é bom quando sai logo depois da destilaria, é porque tem algo errado. Você não pode botar batom em um porco"
Ivy confessa que mudou um pouco essa visão com a cachaça, a diversidade de madeiras para os barris no Brasil e as possibilidades criativas que implicam. "Muitas pessoas estão envelhecendo com carvalho europeu e americano, porque cresce rápido e segura bem, mas a madeira não é necessariamente a mais interessante", observa. "No Brasil, você pode usar todas essas madeiras", entusiasma-se. E pondera: "É perigoso. Há um problema de deflorestação grande. Mas, também é possível revitalizar o espaço com plantas."
Ela descreve algumas madeiras que a encantaram no mundo da cachaça.
A amburana tem sabor de canela e nozes, como cereal; o bálsamo lembra incenso de igreja. Gostaria que os destilados fossem feitos assim, com o objetivo de realçar, e não esconder"
O pisco peruano também ganha pontinhos valiosos nas suas anotações e preferências: "pisco é tão bom, floral, botânico, como um gin. Não sei por que as pessoas não bebem mais pisco, limão e soda".
Condições justas dependem dos importadores e de nós
Desmatamento, desigualdade, condições insalubres de trabalhos, baixíssimo retorno financeiro. Ivy acredita que é possível melhorar esse modus operandi típico da cadeia produtiva latino-americana, desde que os consumidores estejam mais atentos e os importadores atuem com consciência.
Responsabilidade e proximidade são palavras que saltam nesse momento. "Uma das coisas bonitas nos destilados latinos é que você pode ver a foto do cara que fez a coisa, ou do homem que cavou o buraco para assar os agaves. Pode saber quem são essas pessoas. A questão é ter certeza de que essas pessoas são bem tratadas e bem pagas".
Ela diz que não perde oportunidades de dar voz ao desequilíbrio. "Sempre pergunto (para os produtores): Quem está pagando? Quem está levando dinheiro? No final do dia, isso é agricultura, destilados são agricultura, vêm de uma planta".
Outro desafio que ela vê com urgência é a valorização dos produtos da região diante dos consumidores. "Apenas porque esses países não têm os recursos financeiros não significa que os produtos não sejam bons. Muito disso precisa ser repensado. Estou tentando mudar essa percepção e motivar as pessoas a abraçar a relevância cultural. Apenas porque não é envelhecido não quer dizer que não seja bom", diz.
E finaliza: "Lugares como o Leyeda estão levantando isso, e espero que esse livro faça isso também. Adoraria ver cachaça nesse país, nos Estados Unidos, ter a mesma popularidade do Brasil, ou a mesma do mezcal".
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