Topo

"Guerra dos Bêbados": conflito assolou país que mais bebe álcool no mundo

Soldados participam de cerimônia do Dia da Independência da Transdnístria - Corbis via Getty Images
Soldados participam de cerimônia do Dia da Independência da Transdnístria
Imagem: Corbis via Getty Images

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

22/01/2021 04h00

De todas as drogas, o álcool é comprovadamente uma das que mais abre as válvulas da violência em humanos. Mas, por outro lado, a vida nos ensina que uma mesa de bar também é um bom lugar para resolver desavenças.

Foi mais ou menos o que aconteceu em 1992, na Guerra da Transdnístria, uma estreita faixa de terra, menor que o Distrito Federal, no extremo leste europeu, espremida entre duas ex-repúblicas soviéticas, a Moldávia e a Ucrânia. "De dia, soldados dos dois lados lutavam de modo tradicional, um tentando matar o outro. À noite, no entanto, a luta parava e os inimigos se encontravam para uma bebida", diz Andrew Vinken no livro "The Forgotten Past" ("o passado esquecido", sem edição brasileira).

Soldados da Guarda Nacional da Transdnístria durante a guerra, em 1992 - TASS via Getty Images - TASS via Getty Images
Soldados da Guarda Nacional da Transdnístria durante a guerra, em 1992
Imagem: TASS via Getty Images

"Acontece que eles se davam bem. Tão bem que decidiram parar de tentar atirar um no outro durante o dia. Depois de quatro meses de animosidade cada vez menor, a paz estourou. É uma pena que ambos os lados tenham sofrido centenas de baixas antes que a coisa basicamente se extinguisse por conta própria. Tecnicamente, as hostilidades acabaram com um cessar-fogo, mas a maioria dos combatentes havia parado de atirar bem antes", narra o autor.

Oficiais do exército da Transdnístria  - Getty Images - Getty Images
Oficiais do exército da Transdnístria
Imagem: Getty Images

É possível que essa seja uma versão romanceada do conflito. Há relatos em primeira mão sobre o consumo de álcool na guerra. Só que não de maneira tão amistosa.

A bebedeira era disseminada entre voluntários em Bendery, uma das cidades envolvidas no conflito, segundo Erika Dailey, Jeri Laber e Lois Whitman em "Human Rights in Moldova: The Turbulent Dniester", relatório produzido pela ONG Human Rights Watch pouco após a guerra, em 1993. Os autores contam que soldados bêbados abriam fogo indiscriminadamente em bairros civis. O álcool chegou a ser proibido entre as tropas, mas ainda se viam soldados de porre nas ruas.

Soldados russo, moldávio e transdnístrio em zina de segurança durante a guerra - Getty Images - Getty Images
Soldados russo, moldávio e transdnístrio em zona de segurança durante a guerra
Imagem: Getty Images

Um médico de origem gagauz (minoria de língua túrquica e religião majoritariamente cristã ortodoxa), foi forçado a lutar contra seu próprio povo. Ele conta, em um relato publicado no livro "Bullets on the Water: Refugee Stories" ("Balas na água: histórias de refugiados", sem edição brasileira), de Ivaylo Grouev, sua experiência traumática:

"Uma noite, nas trincheiras, depois de uma festa de bebedeira, um dos soldados moldavos colocou a arma na minha testa e gritou para mim: 'Agora você vai morrer como um cachorro!' Ele engatilhou a arma. Naquele momento, outros soldados que me conheciam bem tentaram detê-lo. Eles disseram a ele que eu tinha acabado de ajudá-los, que estava salvando vidas. O soldado estava tão bêbado que acho que ele não entendeu nada do que foi dito. Eu pensei: 'Eu vou morrer.' Uma arma estava na minha testa. E o soldado estava completamente bêbado. Eu apenas tentei ficar calmo. De repente, ele perdeu o interesse por mim. Desta vez eu tive sorte."

Soldados da Guarda Nacional da Transdnístria na cerimônia de 12 anos da independência local - Getty Images - Getty Images
Soldados da Guarda Nacional da Transdnístria na cerimônia de 12 anos da independência local
Imagem: Getty Images

Trans o quê?

Em 1992, havia outros conflitos no mundo além da Guerra da Bósnia e da rixa entre Nirvana e Guns N' Roses. Em dezembro de 1991, quatro meses após a Moldávia declarar independência, estourou a Guerra da Transdnístria. É nessa região, a leste do rio Dnister, que se concentra a minoria russa da Moldávia.

Fortaleza em Bender, Transdnístria - Getty Images - Getty Images
Fortaleza em Bender, Transdnístria
Imagem: Getty Images

A guerra durou pouco e matou menos de 2 mil pessoas. O território rebelado conseguiu autonomia após um cessar-fogo assinado com a Moldávia e a Rússia. Mas a situação não se resolveu por completo. Em 2006, a população local aprovou, em um referendo não autorizado, a independência e uma possível união com a Rússia.

Desde o ano passado, analistas internacionais voltaram a prestar atenção à Transdnístria. Isso por causa da reedição da Guerra de Nagorno-Karabakh, entre Azerbaijão e Armênia. Essa região azeri, de maioria armênia, também esteve em guerra no começo dos anos 1990, logo após a dissolução da União Soviética. Em 2020, durante um mês e meio, a região voltou a ser um campo de batalha.

Tropas da Transdnístria - Getty Images - Getty Images
Tropas da Transdnístria
Imagem: Getty Images

O país que mais bebe no mundo

Não é à toa que a Guerra da Transdnístria ganhou o apelido, na região, de "guerra dos bêbados". A Moldávia é, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o país com o maior consumo de bebidas per capita do planeta. São 15,2 litros de álcool puro por pessoa ao ano, quase o dobro da média brasileira, segundo o último relatório, de 2018 (em inglês). Mas é difícil precisar esses dados, pois mais de dois terços das bebidas consumidas no país são de produção caseira.

Pescador da Transdnístria bebe conhaque da garrafa - Getty Images - Getty Images
Pescador da Transdnístria bebe conhaque da garrafa
Imagem: Getty Images

Mesmo assim, a fabricação regulamentada é uma das principais forças da economia local. Cerca de 10% da força de trabalho nacional está na indústria do álcool e 15% do orçamento do governo vem das bebidas.

Ônibus lotado em Tiraspol, na Transdnístria - Getty Images - Getty Images
Ônibus lotado em Tiraspol, na Transdnístria
Imagem: Getty Images

Diferentemente da maioria das ex-repúblicas soviéticas, a Moldávia não é uma nação de bebedores de vodca, mas de vinho - o que ajuda a explicar as diferenças culturais entre a minoria russa da Transdnístria e os moldavos, um povo que fala romeno e que tem, assim como a Geórgia, vinícolas de renome internacional.

O país celebra o Dia Nacional do Vinho, mas desde a independência o consumo de destilados vem aumentando, segundo um estudo de 2017 que saiu na publicação científica European Journal of Population. O que é sempre um perigo maior quando se luta contra o alcoolismo endêmico. Essa guerra está longe de acabar.

Civis da Transdnístria - Getty Images - Getty Images
Civis da Transdnístria
Imagem: Getty Images

Álcool e guerra

O consumo exagerado de álcool é algo que acompanha as guerras desde sempre. Os tártaros conquistaram Moscou facilmente em 1382 porque os russos estavam bêbados de hidromel e se preocuparam mais em subir as muralhas e provocar os inimigos.

No século 18, a bebida fazia parte do cotidiano das Forças Armadas britânicas. O alcoolismo foi um problema comum na Guerra dos Sete Anos (1756-1763) e na Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775-1783). A ração diária dos soldados ingleses incluía doses de rum ou de vinho.

Homem tira foto da namorada em frente às bandeiras da Rússia, Transdnístria, Ossétia do Sul e Abecásia - Getty Images - Getty Images
Homem tira foto da namorada em frente às bandeiras da Rússia, Transdnístria, Ossétia do Sul e Abecásia
Imagem: Getty Images

Também não faltam exemplos de casos curiosos de camaradagem alcoólica entre inimigos. Em 1812, britânicos e americanos bebiam amigavelmente às margens do rio Niágara, na fronteira entre Canadá e Estados Unidos, quando chegou a mensagem dizendo que os EUA eram, mais uma vez, inimigos dos ingleses. Terminaram o drinque antes de retornarem a seus postos.

Isso sem deixar de esquecer a famosa Trégua de Natal. Na ocasião, alemães e ingleses baixaram as armas para trocar presentes, cantar e jogar futebol durante o Natal de 1914, o primeiro da Primeira Guerra Mundial.