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Aperol spritz: drinque da moda tem raízes em império e até no fascismo

Aperol Spritz teve origem durante a unificação italiana e hoje povoa as redes sociais - Federica Ariemma/Unsplash
Aperol Spritz teve origem durante a unificação italiana e hoje povoa as redes sociais
Imagem: Federica Ariemma/Unsplash

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

12/12/2020 04h00

A cena é comum em qualquer "bacaro", o típico boteco de vinhos de Veneza, na Itália. Ao cair da noite, amigos se encontram para um drinque que serve de abrideira para o jantar. No ritual local do aperitivo, a mais comum dessas bebidas é o spritz, feito com prosecco ou algum outro vinho espumante, água com gás e uma base de bitter, tipo de bebida feita com essências herbais e que tem sabor amargo ou agridoce.

Os locais costumam tomar seu spritz com Select, um bitter que nasceu na própria Veneza há exatos 100 anos. Outras versões são feitas com marcas mais conhecidas no Brasil, como Cynar, Campari ou Aperol, a mais usada no drinque - tanto que o nome que ganhou o mundo não foi "spritz veneziano", mas "aperol spritz".

O leve amargor e o adocicado refrescante eram conhecidos dos italianos havia um tempo, mas o spritz se espalhou pelo planeta na última década.

Espumante, água com gás, uma base de bitter e muito potencial nas redes - Getty Images - Getty Images
Espumante, água com gás, uma base de bitter e muito potencial nas redes
Imagem: Getty Images

Aquele laranja brilhante, como se o sol estivesse descendo para dentro da sua taça, era tentador demais para usuários do Instagram. Já são mais de 1,5 milhão de fotos de #spritz na rede social.

Tomar um desses drinques no fim de uma tarde quente ficou comum também fora da Bota. Em 2016, São Paulo ganhou um bar dedicado ao spritz, que apenas seguiu uma moda, que se esparramou de Buenos Aires a Tbilisi, de Barcelona a Toronto

Já nas primaveras de Viena, os pátios e mesas ao ar livre de bares ficam salpicadas de taças alaranjadas. A capital da Áustria, porém, tem uma conexão muito maior com o drinque.

Apesar de ser feito com ingredientes italianos, ele é tão austríaco quanto italiano"

Isso é o que diz o jornalista Adam McDowell em "Drinks: A User's Guide" ("Drinques - manual do usuário", sem edição brasileira).

Século 19: entre a ocupação e a unificação, um spritz

Em 1815, Viena sediou as reuniões que redefiniram os mapas da Europa após a derrota de Napoleão, que, nos anos anteriores, anexou, controlou ou se aliou a praticamente todos os países da Europa Ocidental. A Península Itálica, duramente atingida por Bonaparte, manteve-se como um emaranhado de estados independentes, apenas as zonas de controle e de influência mudaram. Assim, com o Congresso de Viena, surgiu o Reino Lombardo-Vêneto, constituinte do Império Austríaco. Cidades como Milão, Veneza, Verona e Bérgamo passaram ao controle dos Habsburgo.

Não foi uma ocupação pacífica. Os vice-reis em Milão e Veneza tinham que lidar com o movimento pela unificação italiana, que crescia ano a ano.

Desacostumados coma  potência do vinho, austríacos "aguavam" a bebida mais querida da Itália - Getty Images/EyeEm - Getty Images/EyeEm
Desacostumados coma potência do vinho, austríacos "aguavam" a bebida mais querida da Itália
Imagem: Getty Images/EyeEm

E a bebida com isso?

As diferenças culturais não facilitavam as coisas, o que podia ser visto no copo das pessoas. Historicamente, a fronteira entre Áustria e Itália faz parte da grande linha que divide a Europa Ocidental entre sul e norte, latinos e germânicos e, muito mais importante, vinho e cerveja.

Bebedores de cerveja, os austríacos que viviam no Vêneto não estavam habituados ao coice ligeiramente maior do vinho, então eles adicionavam água. É o que contam as jornalistas especializadas em bebidas Talia Baiocchi e Leslie Pariseau no livro "Spritz: Italy's Most Iconic Aperitivo Cocktail" ("Spritz: o mais icônico coquetel de aperitivo da Itália", sem edição brasileira). Soldados, diplomatas e outros representantes dos Habsburgo introduziram a prática de adicionar um tiquinho d'água nas taças. Ou, como diziam, spritzen.

Após as guerras de independência da Itália, o Lombardo-Vêneto, um reino artificial demais para durar muito mais, foi para o saco em 1866. Suas cidades passaram a integrar o recém-formado Reino da Itália. Os austríacos foram para casa, mas alguns costumes ficaram, como o spritz, esse vinho espumante branco ou tinto acrescido de água.

Séculos 20 e 21: fascismo, futurismo e hashtags

Aperol spritz com vista para as Dolomitas, no norte da Itália - Getty Images/RooM RF - Getty Images/RooM RF
Aperol spritz com vista para as Dolomitas, no norte da Itália
Imagem: Getty Images/RooM RF

Em 1919, os irmãos Barbieri criaram, em Pádua, outra das cidades que estiveram sob domínio austríaco no século anterior, uma bebida amarga feita com genciana, ruibarbo, cinchona e outras ervas. Nos anos 1920, bares de Pádua e de outras cidades do Vêneto passaram a incrementar a fórmula de vinho e água dos austríacos. Introduziram a água com gás e algum bitter local.

Nessa época, o nacionalismo estava em alta: os fascistas chegaram ao poder na Itália em 1922, então valorizar produtos regionais era mandatório.

Além disso, segundo as autoras do livro, havia a influência dos representantes do futurismo. Essa corrente artística surgiu na Itália e nas décadas de 1920 e 1930 manteve diversos pontos em comum com os fascistas, como o ultranacionalismo radical. No balcão do bar, os futuristas acreditavam que algumas misturinhas produziam efeitos mágicos em que as bebia.

O spritz moderno surgiu dessa intenção de tomar um drinque austríaco e fazê-lo italiano. Funcionou. Mussolini foi executado e exposto em praça pública, o fascismo foi derrotado e, após o fim da Segunda Guerra, o spritz virou sinônimo do aperitivo italiano, essa deliciosa transição do fim do dia de trabalho para as horas de descanso e relaxamento.

Aperol Spritz ficou caidinho por décadas, até que os descolados o resgataram - Getty Images - Getty Images
Aperol Spritz ficou caidinho por décadas, até que os descolados o resgataram
Imagem: Getty Images

Popularidade caiu

Entre as décadas de 1950 e 2000, o drinque andou bem fora de moda. Em 2003, o Grupo Campari, companhia lombarda de bebidas que é dona, além do famoso bitter vermelho que lhe dá nome, de marcas como Cinzano, Wild Turkey, Sagatiba e Cynar, comprou a Aperol.

Nos anos seguintes, o conglomerado investiu em muito marketing e levou a bebida criada em Pádua a outros mercados. Se nos anos 30 as campanhas publicitárias vendiam Aperol como uma bebida para pessoas ativas, que praticam esporte, agora sua relativamente baixa graduação alcoólica (11%) passou a ser vendida como perfeita para fazer aquele social.

Justamente por ter menos álcool que o Campari (23%) e por ser menos amargo, o Aperol tinha tudo para cair no gosto de mais gente e de espalhar os encantos do spritz. A receita mais comum do drinque pede três partes de prosecco e duas de Aperol em uma taça cheia de gelo. Completar com água com gás e uma rodela de laranja.

Bebida dos descolados

No fim da década de 2000, fácil de fazer e leve o suficiente para tomar alguns, o aperol spritz voltou a se popularizar no verão europeu. De lá começou a ganhar as Américas.

O hábito de tomar um spritz ao fim do dia, um "direito cultural", de acordo com as autoras do livro, ganhou outros contornos ao se espalhar para fora da Itália. A jornalista Emilie Friedlander escreveu a respeito, em um artigo em que critica as diferenças entre tomar o drinque em Veneza e em Nova York, onde vive:

Assim como queijos franceses, chocolates suíços e salsichas alemãs, é um outro exemplo de americanos pegando um produto extremamente mundano e reinterpretá-lo como algo descolado".

No ano passado, o Grupo Campari anunciou que o Aperol tem sido a chave do crescimento da empresa. A vendas subiram 21,8%, puxadas sobretudo por um aumento de mais de 10% em seus três maiores mercados, Itália, Alemanha e Estados Unidos.

O interesse do público na internet mostra isso. As buscas globais por "aperol spritz" no Google eram quase inexistentes até 2009, quando começaram a subir, sempre seguindo um padrão anual: pico em julho ou agosto (verão no Hemisfério Norte), seguido de uma queda e uma leve subida em dezembro (período de festas e início do nosso verão). A cada ano, as buscas aumentavam, chegando ao auge em julho de 2019.

Criado por austríacos, popularizado na Itália e espalhado pelo mundo - Unsplash - Unsplash
Criado por austríacos, popularizado na Itália e espalhado pelo mundo
Imagem: Unsplash

Dois meses antes, um artigo no jornal americano The New York Times repercutiu bastante no país com este título: "O aperol spritz não é um drinque bom". Em resposta, #teamspritz virou assunto nas redes sociais, a autora do texto e o jornal foram "cancelados" pelos fãs da bebida, pessoas vestiram a cor da bebida e fizeram uma "onda laranja" em solidariedade ao spritz. Outros veículos da imprensa local decretaram, sem o menor pudor, que "toda a internet concorda que o aperol spritz é, de fato, bom".

Solidarizar-se com uma marca de uma multinacional bilionária ou achar que 4,5 bilhões de usuários da internet não só compartilham da mesma opinião como estão interessados pelo mesmo assunto que você pode soar um tanto ridículo. Mas, ei, foi o último verão antes da pandemia, uma época em que as pessoas podiam se aglomerar e compartilhar copos.

Aquela "onda laranja" não precisa ser levada a sério. Afinal, estamos falando de um drinque com origens multiculturais, usurpado e melhorado com aspirações ultranacionalistas, mas que felizmente sobreviveu ao fascismo para se tornar uma bebida popular. Pode ser em um copo barato e "raiz" para velhos venezianos ou em uma taça cara e brilhante nas mãos de hipsters, coxinhas e quem mais quiser. O que importa é emoldurar o fim da tarde.