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Ronaldo Fraga: "Zuzu Angel é resistência no país em que torturador é ídolo"

Ronaldo Fraga encerrou a edição comemorativa de 25 anos do São Paulo Fashion Week no domingo. Em entrevista a Nossa, estilista conta inspirações para a coleção e disserta sobre poder político da moda - Reprodução
Ronaldo Fraga encerrou a edição comemorativa de 25 anos do São Paulo Fashion Week no domingo. Em entrevista a Nossa, estilista conta inspirações para a coleção e disserta sobre poder político da moda
Imagem: Reprodução

Gustavo Frank

De Nossa

09/11/2020 09h50

Ronaldo Fraga encerrou a edição comemorativa de 25 anos do São Paulo Fashion Week na noite deste domingo (8). O evento, considerado o maior na moda da América Latina, se adaptou inteiramente às plataformas digitais para driblar os tempos de pandemia do coronavírus.

Para sua coleção, o estilista reviveu a memória de Zuzu Angel em um projeto audiovisual, que, segundo ele, foi feito para mostrar como as lutas que vivemos ao longo da história do país não foram em vão.

"A Zuzu Angel foi muito mais do que uma estilista, ela foi uma brasileira que lutou pela liberdade do nosso país", argumentou ele em entrevista exclusiva a Nossa após o fim do evento, no Grand Mercure Ibirapuera, em São Paulo (veja no final da reportagem mais sobre a história da estilista).

Em uma apresentação que misturou imagens do passado de Zuzu com a modernidade tecnológica proposta à moda nos últimos tempos, como as modelos e roupas em realidade virtual, Ronaldo pontuou que os "momentos obscuros" em que vivemos foi o ponto de partida para que a "Zuzu Vive" fosse criada.

É como se eu recebesse Zuzu para um jantar na minha casa e ficasse constrangido com as notícias atuais do Brasil", explicou. "No entanto, eu me viro para ela e digo: 'a sua luta não foi em vão'".

Os rascunhos iniciais para a concretização desse projeto nasceram de "Quem matou Zuzu Angel?", coleção criada por ele há 20 anos e marco histórico entre todas as edições do SPFW.

Tudo foi pensado nos mais minuciosos detalhes para o vídeo, gravado em um apartamento para o qual Ronaldo se mudou recentemente em Belo Horizonte, como as vidraças que expõem a cidade, o óleo que escorre para dentro dos cômodos e as velas, que representam uma "festa escondida".

No trabalho, o estilista propõe ainda um diálogo entre a moda e as políticas sociais, como com as comidas e bebidas colocadas à mesa, que fazem parte de um projeto na cidade de Mariana, em Minas Gerais, atingida pela queda das barragens na região, e as peças da coleção, criadas por rendeiras da Paraíba.

"Eu acredito que a moda está louca para se libertar da roupa. Isso acabou", opina.

Ela precisa olhar para o lado, dialogar com outros vetores. Caso contrário, seremos todos figuras do século passado".

Quando questionado o que "Zuzu Vive" (2020) e "Quem matou Zuzu Angel?" (2001) têm em comum, Ronaldo cita o respeito e orgulho pelos símbolos nacionais.

"A primeira aconteceu em uma época em que estavam abrindo os arquivos da ditadura militar", relembrou. "Isso fez com que eu me colocasse lá, há 20 anos, e questionasse: 'nós estaremos andando ainda mais para trás?'".

Seguindo o raciocínio, o atual governo brasileiro é mencionado pelo artista, que retoma uma declaração feita por Jair Bolsonaro, em agosto de 2019, sobre Carlos Alberto Brilhante Ustra — reconhecido pela Justiça como torturador da ditadura militar, na qual o presidente creditou o coronel em questão como "herói nacional".

A gente tem um presidente eleito que fala sobre o seu ídolo ser um torturador. A nora da Zuzu teve os seios arrancados por ele".

O estilista continua a costurar o seu argumento ao associar Zuzu Angel como um símbolo de liberdade — que vai além de gerações, embora as mais recentes delas não tenham completo conhecimento sobre a sua história.

"A Zuzu é assassinada com tudo o que estamos vivendo: genocídio indígena, queima da floresta, entre outras falências do país", completa. "Ela é um símbolo de resistência contra a destruição do Brasil. Cada fratura nacional, uma Zuzu é assassinada".

Em um paralelo atual, ele acrescenta: "Marielle Franco, por exemplo, é mais uma Zuzu Angel na história do Brasil".

Os ensinamentos da era digital

SPFW 25 anos: Ronaldo Fraga - Divulgação - Divulgação
SPFW 25 anos: Ronaldo Fraga
Imagem: Divulgação

A produção de um audiovisual não foi uma surpresa para Ronaldo. A ideia de criar um projeto semelhante, que pudesse ser transmitido para diversas pessoas, já estava sendo cogitada.

"Curiosamente, há dois anos eu queria fazer um desfile assim", disse. "Ele ia ser projetado, queria fazer algo que pudesse ser mostrado para o Brasil inteiro".

Para ele, os tempos em que desfiles se restringiam apenas à exibição das roupas chegou ao fim. Uma das dádivas dos novos tempos.

"O desfile não é só pensar na roupa, mas em todo o contexto ao redor", elabora. "É preciso pensar mais amplo. A roupa pela roupa não rola mais há muito tempo".

O mundo ruiu, a gente não sabe o que vai construir a partir de agora. O fato é que estamos sob escombros e vamos ter que reinventá-lo a partir disso".

A exibição de "Zuzu Vive", com modelos em realidade virtual com o rosto da estilista, marca um novo passo tanto para as próximas edições do SPFW como para Ronaldo.

Por agora, seus próximos passos se reservam para a coleção que vai estrear em 2021.

"A imagens de vídeo terão um intuito: despertar ainda mais o desejo de quem assiste", conclui.

Quem é Zuzu Angel?

A estilista Zuzu Angel - Reprodução - Reprodução
A estilista Zuzu Angel
Imagem: Reprodução

Zuleika de Souza Netto, mais conhecida como Zuzu Angel, foi uma estilista brasileira que trabalhava primordialmente com a mistura de tecidos, como renda, seda, fitas e chita, além de matérias-primas nacionais, como bambu e madeira.

A mineira, da cidade de Curvelo, é reconhecida como a pioneira a levar o nome do Brasil ao exterior com a moda. Abrasileirou o termo fashion designer.

Seu trabalho se destacou nos anos 70, quando abriu uma loja na Zona Sul do Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1939 — antes disso, produzia roupas para família e amigos, apenas os "mais próximos".

Na vida pessoal, a estilista foi casada com o americano Norman Angel Jones, com quem teve três filhos: Ana Cristina, Hildegard e Stuart, sendo esse último o mais velho e quem a motivou a se tornar um "símbolo de resistência", como cita Ronaldo Fraga.

Zuzu, Stuart e a ditadura militar

Stuart Angel Jones, primogênito de Zuzu - Acervo Zuzu Angel - Acervo Zuzu Angel
Stuart Angel Jones, primogênito de Zuzu
Imagem: Acervo Zuzu Angel

Stuart Angel estudou economia e, no final dos anos 60, filiou-se ao MR-8, grupo guerrilheiro de ideologia socialista do Rio de Janeiro que combatia a ditadura militar no Brasil, instaurada em 1964.

Em 1971, o jovem foi capturado e, posteriormente, torturado e morto pelo Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) no aeroporto do Galeão. Seu corpo foi dado como desaparecido pelas autoridades na época — e até hoje não foi encontrado.

O objetivo era coletar informações sobre o paradeiro do capitão Carlos Lamarca, um dos principais líderes da luta armada contra o regime militar.

A partir disso, a busca por respostas de Zuzu começava, e grande parte dela foi feita através da moda: desde a coleção que trazia manchas vermelhas, que representavam o sangue, até um desfile-protesto em Nova York, documentado pela TV Cultura:

A moda e a política no Brasil davam os seus primeiros passos interligados, que até hoje dão voz até hoje para as marcas. Além de Fraga, LED e Misci, especialmente, provaram isso esse ano.

Morte de Zuzu Angel e respostas

Em 1976, Zuzu morreu em um acidente de carro na Estrada da Gávea, à saída do Túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro, hoje batizado com o seu nome.

Bilhete de Zuzu Angel distribuído entre artistas e intelectuais - Instituto Zuzu Angel - Instituto Zuzu Angel
Bilhete de Zuzu Angel distribuído entre artistas e intelectuais
Imagem: Instituto Zuzu Angel

Em um papel, uma semana antes do acidente, escreveu "se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, é obra dos assassinos do seu amado filho". O bilhete foi entregue ao seu círculo familiar e de amigos mais próximos, que incluia o cantor Chico Buarque.

Treze anos depois, em 1998, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos reconheceu a estilista como pessoa que, "por ter participado de atividades políticas, tenha falecido em dependências policiais ou assemelhadas".

O assassinato era reconhecido pela primeira vez, e as evidências continuariam a aparecer nos próximos anos:

Duas testemunhas contaram terem visto o carro de Zuzu ser jogado para fora da pista por outro veículo e a presença do coronel Freddie Perdigão Pereira, reconhecido como torturador político, que faleceu em 1998, em uma foto feita no local do suposto acidente na época.

Ambas as provas foram reconhecidas pela Comissão da Verdade. A primeira, em 2007, e a segunda, em 2014.

Em 2019, Hildegard teve acesso a certidão de óbito conclusiva da mãe e do irmão, em que as causas das mortes foram atestadas como "morte violenta causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985".