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Ruas lotadas e foco no Natal: como chegou o confinamento 2.0 à Irlanda

Irlandeses vão às compras dois dias depois do anúncio de novo lockdown - AFP
Irlandeses vão às compras dois dias depois do anúncio de novo lockdown Imagem: AFP

Bruna Aranguiz

Colaboração para Nossa, da Irlanda

30/10/2020 04h00

Poderia muito bem ser um déjà vu, desses que o cérebro nos prega de vez em quando: ruas vazias, comércios fechados e um silêncio quase perturbador muito atípico para uma metrópole sempre pulsante. Cenas que trazem à tona uma memória não tão longínqua do que se passou em muitas cidades no início da pandemia.

Essa realidade, porém, acaba de bater à porta da Irlanda novamente e foi assim que o dia amanheceu em Dublin na última semana. O país foi o primeiro da União Europeia a decretar o segundo confinamento para combater a disseminação do coronavírus.

Foi em um pronunciamento televisionado na segunda-feira passada (19) que o primeiro-ministro - ou "Taoiseach", em gaélico, como preferem dizer os irlandeses - Micheál Martin comunicou a decisão do novo confinamento: "se trabalharmos juntos nas próximas seis semanas, seremos capazes de comemorar o Natal de uma forma significativa. A jornada não será fácil, mas o futuro está em nossas mãos".

Primeiro ministro da Irlanda, Micheal Martin, fala com a população em 19 de outubro - JULIEN BEHAL/AFP - JULIEN BEHAL/AFP
Primeiro ministro da Irlanda, Micheal Martin, fala com a população em 19 de outubro
Imagem: JULIEN BEHAL/AFP

A verdade é que a medida é muito mais do que mera prevenção para conter o tal "Corona-Grinch" de roubar o Natal. O buraco é mais embaixo. Embora o número de óbitos, felizmente, continue em ritmo desacelerado, o gráfico do dia 18 de outubro não foi alentador - a Irlanda bateu seu próprio recorde de novos casos, chegando a contabilizar 1.284 em um só dia.

A véspera do confinamento

Os dias que antecederam o novo confinamento foram, para muitos, uma verdadeira saga para resolver a vida e aproveitar as últimas horas de ar puro. Cientes do que estava por vir, os dublinenses tomaram as ruas da cidade com mais avidez que de costume.

Um corre-corre de pessoas que andavam pelo centro de Dublin e tentavam fazer suas últimas compras nas lojas, comparecer à última sessão no salão, ou aproveitar a última oportunidade de comer em algum restaurante anunciavam o inevitável.

Me atrevi ir ao centro da cidade no sábado que antecedeu o comunicado oficial com o intuito de aproveitar os últimos dias de "liberdade". Obviamente, não fui a única. Me deparei com uma Dublin abarrotada de gente, em sua maioria jovens.

Um quê de carnaval reinava por ali, ao mesmo tempo em que uma estranha sensação de pressa pairava no ar: a pressa de aproveitar o dia, independentemente do frio que fazia lá fora.

Encontrar uma mesa para sentar foi quase uma missão impossível. "Não estamos mais aceitando reserva, só walk-ins", informou-me um dos garçons por trás de uma espécie de armadura de plástico que substituía a máscara convencional. Segui para o próximo restaurante para ouvir um desanimador "a espera é de mais ou menos 40 minutos" de outro garçom enquanto apontava a fila de pessoas famintas por uma refeição ao ar livre que se formava em frente ao restaurante.

Pouco tempo antes, a fim de se adaptar às novas restrições (e salvar os negócios), os famosos pubs (bares irlandeses) e restaurantes se viram obrigados a colocar suas mesas e cadeiras nas ruas. Algo pouco comum em Dublin, onde o frio e a chuva dão as caras a maior parte do ano e poucos estabelecimentos apostam em espaços descobertos.

Pubs em Dublin agora contam com área externa - e frequentadores seguem assíduos - AFP - AFP
Pubs em Dublin agora contam com área externa - e frequentadores seguem assíduos
Imagem: AFP

Na noite de quarta-feira, quando o lockdown entraria em vigor à meia-noite, preferi ficar em casa. Eu sabia bem que a algazarra seria grande e preferi não me expor. Perguntei a uma amiga que estava no centro da cidade como estava o movimento nas ruas. A resposta que recebi foi categórica: "Está pior. 10 vezes pior".

Breve respiro

Grafton Street, em Dublin, segue lotada mesmo após novo lockdown - PAUL FAITH/AFP - PAUL FAITH/AFP
Grafton Street, em Dublin, segue lotada mesmo após novo lockdown
Imagem: PAUL FAITH/AFP

A realidade era bem diferente pouquíssimo tempo atrás: depois de um verão que pareceu passar num piscar de olhos e com índices da covid-19 surpreendentemente baixos - entre 5 e 20 novos casos por dia - a Irlanda tinha motivo de sobra para comemorar (cada um no seu quadrado, é claro).

Assim como em muitos outros países da Europa, as restrições afrouxaram nos meses mais quentes e a vida parecia ter voltado a uma espécie de "novo-velho-normal". Sabíamos, porém, que esse respiro era temporário. "A m**** ainda vai bater de novo no ventilador", previa um amigo irlandês. O que não sabíamos é que os dias de glória iriam durar tão pouco.

A ideia é que o novo confinamento dure seis semanas até o dia 1º de dezembro, mas nada impede que seja estendido. Os rumores, por sua vez, já circulavam há tempos.

A notícia, portanto, veio sem grandes surpresas, mas não sem a trazer consigo a dolorosa sensação de termos tomado um banho de água fria.

Ladeira abaixo

Prova de que a situação estava rumo à piora era o fato de que algumas outras regiões do país, como Kildare e Laois, já haviam entrado em novo confinamento no mês de agosto. Com a curva do gráfico subindo em alarmante escalada em todo território nacional desde setembro, era apenas questão de tempo até que a segunda onda se espalhasse.

Homem com máscara passa por grafite com os dizeres "Sem preocupações" - PAUL FAITH/AFP - PAUL FAITH/AFP
Homem com máscara passa por grafite com os dizeres "Sem preocupações"
Imagem: PAUL FAITH/AFP

Já no início do mês de outubro o governo tinha decidido puxar novamente as rédeas em todo território nacional, passando do nível dois para o nível três - segundo o plano traçado pelo governo que determina níveis com diferentes pacotes de restrições -, o que já significava medidas mais restritivas, como a proibição de grupos de pessoas e de viagens domésticas, por exemplo.

Vale lembrar que, no início da pandemia, a Irlanda chegou a ficar entre os países com o maior número de casos per capita. Embora os números pudessem facilmente enganar por não chegarem perto ao de outros países, como Espanha e Itália, o diminuto território irlandês conta com índice demográfico de menos de 5 milhões de habitantes. A conta de casos por milhão mostrava que o resultado era alto.

Lockdown 2.0

Semelhante ao início da pandemia, quando empresas e escritórios tiveram que fechar suas portas, o novo confinamento restringe o movimento da população e abertura dos comércios, mas com algumas mudanças.

Além dos estabelecimentos considerados essenciais, escolas e creches, desta vez, permanecem abertas, assim como o setor de construção civil. Restaurantes e cafés, entretanto, assim como no confinamento anterior, abrem apenas para viagem ou delivery. Estão proibidas reuniões familiares e visita a outras residências. Caminhadas ou exercício físico são permitidos apenas num raio de 5 quilômetros.

Algumas das muitas empresas de tecnologia e multinacionais presentes em Dublin - não à toa considerada o vale do Silício da Europa, por ser casa de grandes headquarters como os do Facebook, Twitter, Airbnb, Microsoft, Linkedin, entre outras - que aos poucos estavam retomando as atividades e permitindo a entrada de alguns funcionários com horário marcado, voltaram duas casas no jogo e fecharam novamente as portas.

Uso de máscaras ainda é confuso entre a população de Dublin, na Irlanda - AFP - AFP
Uso de máscaras ainda é confuso entre a população de Dublin, na Irlanda
Imagem: AFP

Muito embora as ruas de Dublin - a capital contabiliza a maioria dos casos no país - sejam bastante estreitas e super movimentadas, o que faz do distanciamento social muitas vezes algo impossível, ironicamente, o uso de máscaras permanece não-obrigatório em espaços abertos.

Até mesmo nos espaços fechados o uso de máscaras tem causado confusão: é obrigatório em estabelecimentos como lojas, farmácias, shoppings, livrarias, entre outros, mas não em lugares como bancos, correios, consultórios médicos ou odontológicos, restaurantes e bares.

Ainda assim, nas áreas onde a máscara é obrigatória, pessoas que não respeitarem o uso da máscara estão sujeitas à multa de até 2.500 euros (cerca de R$ 16,8 mil) e seis meses de prisão. Eu, por via das dúvidas, agarro a minha em qualquer situação.

O futuro do confinamento

Avisos em estabelecimentos pedem o uso de máscara para proteção contra o coronavírus - PAUL FAITH/AFP - PAUL FAITH/AFP
Avisos em estabelecimentos pedem o uso de máscara para proteção contra o coronavírus
Imagem: PAUL FAITH/AFP

Ainda segundo Micheál Martin, os bloqueios periódicos podem se tornar a norma. "Até que tenhamos uma vacina segura, devemos continuar nesse padrão".

Será essa a próxima medida dos demais países europeus? Há grandes chances. França teve novo confinamento aprovado nesta quinta (29) e Itália caminha para um destino parecido.

O primeiro final de semana que sucedeu o início do confinamento, porém, não foi animador. O sol apareceu em Dublin e, com ele, o desejo de sair de casa.

O movimento de pessoas na rua era tão grande que me perguntei diversas vezes se estávamos, de fato, em um lockdown. Se não fosse pelas lojas fechadas, eu diria que, por enquanto, nada mudou.

Até que uma vacina eficiente seja lançada, o cenário para o turismo na Europa não é promissor. Por ora, aqui em terras celtas, caso o confinamento seja mesmo levado à sério, espera-se que, pelo menos o Natal seja salvo; e que os irlandeses possam, enfim, voltar a tomar a tão adorada pint de Guinness.