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O lado chef de Lampião: do rústico ao luxo, como era a cozinha do cangaço

Maria Bonita e Lampião: embora cangaceiros tivessem dieta rústica, rei do cangaço também sabia luxar Imagem: Rubens Antonio/UOL

Adriana Negreiros

Colaboração para Nossa

08/08/2020 04h00

No próximo domingo (09), 12h, Zeca Camargo recebe no #BrasilCozinhaComigo, transmitido no Youtube de Nossa, a arquiteta Gleuse Ferreira, bisneta de Lampião e Maria Bonita. Na live, também estarão presentes Dona Expedita, filha do rei do cangaço, e outras mulheres da família. Elas irão preparar com Zeca uma maneja nordestina, prato que entrou na família depois dos tempos célebres dos cangaceiros, que tinham uma dieta essencialmente rústica, como você confere na reportagem a seguir:

Dois dias antes de morrer, na tarde de 26 de julho de 1938, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, fez uma lista de compras para a temporada que pretendia passar no acampamento na grota de Angico, a cerca de mil metros da margem sergipana do Rio São Francisco. No lado oposto, já no estado de Alagoas, funcionava uma das mais sortidas feiras da região, na linda cidade de Piranhas — localidade que, em 1859, recebeu a visita do então imperador Dom Pedro II.

A dieta base dos cangaceiros era a carne de sol e a farinha, ingredientes que resistiam aos dias de deslocamento no sertão Imagem: Rubens Antonio/UOL

Entre os itens que constavam da lista havia arroz, feijão, carne seca, farinha, sal, rapadura, frutas e muita, muita bebida. Coube a um jovem de sua confiança, o coiteiro Pedro de Cândido — que, mais tarde, mediante tortura, denunciaria a localização do grupo para a polícia — providenciar o abastecimento.

Como a lista era comprida, serviu-se de um jegue tão logo chegou a Piranhas. Equipou-o com dois cestos presos à cangalha e lotou-os de mantimentos. Horas depois, Lampião recebia, no conforto de sua barraca, os produtos que compunham a dieta básica dos cangaceiros.

Comida de viagem

Em épocas de deslocamentos, cangaceiros alimentavam-se, basicamente, de carne de sol e farinha. Conservada no sal, a carne resistia às altas temperaturas. Os produtos eram adquiridos nas feiras das pequenas cidades, ocasiões em que Lampião, segundo consta, pagava os preços cobrados pelos comerciantes, sem pechinchar — o choro por um desconto, prática habitual nestes comércios ao ar livre, era evitado por Virgulino.

Os alimentos eram carregados nos bornais, como estes que o célebre Corisco leva trançados ao peito. Ao lado, sua companheira Dadá Imagem: Rubens Antonio/UOL

As compras ficavam guardadas nos bornais, as bolsas típicas dos bandoleiros que até hoje inspiram estilistas. A água, mais difícil de transportar em grandes quantidades, era extraída das raízes do umbuzeiro, típica da caatinga, tida por alguns sertanejos como uma espécie de árvore sagrada.

Nos acampamentos, quando havia a oportunidade, abatia-se animais para o consumo de carne fresca. Bodes estavam entre os preferidos dos integrantes do grupo. Na véspera da chacina de Angico, na qual seriam mortos Lampião, sua companheira Maria Bonita e outros nove cangaceiros, o almoço consistiu de dois bodes assados — e enormes quantidades de cachaça.

Cabra macho na cozinha

Com a chegada das mulheres ao bando, as funções na cozinha passaram a ser divididas Imagem: Rubens Antonio/UOL

Entre os cangaceiros, a culinária não era uma tarefa tida como essencialmente feminina — aqueles eram os anos 30, uma época em que poucos homens frequentavam a cozinha. Mas Lampião e seus súditos estavam habituados a preparar suas próprias refeições desde quando tocavam o terror pelo sertão sozinhos, sem a companhia das mulheres.

De forma geral, após a entrada das cangaceiras no bando, cabia a eles caçar os bichos e, a elas, lavar e temperar. Os cabras reassumiam o serviço no momento de levar as carnes ao fogo.

O cangaceiros preferiam cozinhar durante o dia e enterrar os restos: táticas para despistar seus perseguidores Imagem: Rubens Antonio/UOL

Para não chamar a atenção das forças volantes — os comandos de caça aos cangaceiros — o preferível era cozinhar à luz do dia. Uma fogueira em meio à escuridão poderia denunciar a localização do grupo.

Os bandoleiros também agiam assim porque, após a refeição, ainda haviam de lidar com um trabalho ingrato — abrir profundos buracos no chão para enterrar vísceras, ossos e pele dos animais abatidos. O objetivo era não atrair urubus — o voo das aves agourentas também poderia entregar o ponto exato do esconderijo.

Passarinho ao vinho

Havia ocasiões em que alguns cangaceiros cuidavam de todo o processo. Quando o pouso era confortável — por exemplo, nas fazendas dos coronéis aliados dos cabras — Lampião fazia as vezes de um chef de cuisine.

Quem experimentou assegura que o passarinho ao vinho, uma de suas especialidades, era iguaria de não deixar nada a dever aos melhores chefs da Europa — de onde vinham, inclusive, alguns dos itens mais apreciados pelo cangaceiro, como uísques e perfumes a ele ofertados por políticos e coronéis do nordeste.

Sob nenhum ponto de vista, portanto, o cangaço — fenômeno social complexo e cheio de ambiguidades — comporta uma leitura maniqueísta, da luta entre o bem e o mal. Nem mesmo na gastronomia.

* As fotografias que ilustram esta matéria são, originalmente, todas em preto e branco. Elas ganharam cores pelas mãos do artista e geólogo Rubens Antônio, de Salvador, por meio da colorização digital. Entusiasta da técnica e do cangaço, ele publica o resultado das restaurações em seu perfil no Facebook.

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