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A saga do ultramaratonista que corre da Patagônia ao extremo Alasca

Entre os extremos do continente: de Ushuaia, na Argentina, até o Alasca, nos EUA, Juan percorrerá 26 mil quilômetros correndo - Arquivo pessoal
Entre os extremos do continente: de Ushuaia, na Argentina, até o Alasca, nos EUA, Juan percorrerá 26 mil quilômetros correndo
Imagem: Arquivo pessoal

Eduardo Vessoni

Colaboração para Nossa

15/07/2020 04h00

O mundo inteiro vinha em um ritmo acelerado até que a pandemia paralisou o planeta. Com o ultramaratonista Juan Pablo Savonitti, de 38 anos, acostumado à velocidade dos passos, não foi diferente.

Desde que partiu do Ushuaia, na Patagônia argentina, em janeiro do ano passado, Savonitti corre para chegar no Alasca, nos Estados Unidos. Corre não porque tem pressa, mas pelas pessoas surdas.

Há um ano e meio na estrada, esse atleta corre, literalmente, os 26 mil quilômetros que separam os extremos do continente, contatando e motivando comunidades surdas em cidades e pequenos povoados.

Não sou intérprete, nem professor de educação especial. Mas por minha experiência de vida como filho de pais surdos, procuro romper as barreiras linguísticas, mostrando ferramentas de inclusão e melhorias na vida de uma pessoa surda"

Juan já cruzou toda a Argentina e Chile, país onde teve que parar por conta da pandemia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juan já cruzou toda a Argentina e Chile, país onde teve que parar por conta da pandemia
Imagem: Arquivo pessoal

Até o dia em que conversou por Skype com a reportagem de Nossa, Savonitti já havia percorrido quase 7 mil quilômetros e cruzado toda a Argentina, em direção ao norte do Chile, onde se encontra no momento.

Sua viagem pode ser seguida no perfil @niamalimits do Instagram.

Assim, correndo e inspirando, já cruzou a Terra do Fogo e os Andes, viu o glacial Perito Moreno, caminhou no Parque Nacional Talampaya, visitou a Quebrada de Humahuaca e chegou no Atacama, já em território chileno.

juan pablo ultramaratonista - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Em Jujuy, no norte da Argentina: corrida a mais de 4 mil metros de altitude
Imagem: Arquivo pessoal
Ambiente inóspito: região de Salinas Grandes, na Argentina - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ambiente inóspito: região de Salinas Grandes, na Argentina
Imagem: Arquivo pessoal

Sem patrocínio e apenas com o apoio de empresários locais ou prefeituras, esse argentino de Buenos Aires sempre pede, ao chegar em lugar novo, um salão ou um auditório para que possa dar palestras sobre a língua de sinais.

"O mundo ouvinte conhece muito pouco sobre o assunto", lamenta.

E se Savonitti decidiu levar a vida na correria, a pandemia de coronavírus agora o ensinou a diminuir o ritmo.

"Paciência até que a fronteira seja aberta. Não tenho pressa de seguir a travessia. Enquanto isso, continuo treinando quando posso. O tempo não me incomoda", se conforma o argentino, que há quatro meses vive em troca de prestação de serviços em um hotel em Arica, cidade chilena próxima a Tacna, já no Peru.

Juan corre de cinco a seis dias seguidos, muitas vezes em condições extremas - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juan corre de cinco a seis dias seguidos, muitas vezes em condições extremas
Imagem: Arquivo pessoal

Por la carretera

A causa é nobre, mas a estrada é bruta.

Um dos momentos mais difíceis da viagem foi o cruzamento dos Andes na fronteira entre a Argentina e o Chile, a 4.200 metros de altitude.

A parada seguinte seria em San Pedro do Atacama, mas pelas condições extremas da região a travessia só é permitida para quem está motorizado. "São 160 quilômetros de puro deserto", descreve o ultramaratonista.

Para isso, teve que esperar dois dias em um hotel daquela fronteira até que um amigo viesse de moto de Tilcara, a 282 quilômetros dali, para poder acompanhá-lo.

Sua rotina consiste em correr entre 5 e 6 dias, com pernoites em povoados intermediários, seguidos de três dias de descanso, aproximadamente. É nessa janela que tem tempo para conhecer destinos turísticos e contatar as próximas comunidades que serão visitadas.

Porém, ao final da viagem, Savonitti deverá ter percorrido muito mais do que os quase 30 mil quilômetros até seu destino final. Após vencer um trecho (entre 45 e 60 quilômetros por dia), ele marca sua posição no GPS e volta (de carona) para a parada anterior para buscar a bagagem.

O trecho mais longo que percorreu até agora foi na província argentina La Rioja, entre Villa Unión e Chilecito, uma corrida que começou às oito da noite e só terminou no dia seguinte, às duas da tarde.

Tudo isso para que o mundo o escute e os surdos possam "escutar" o mundo melhor.

Entre os contatos mais emocionantes, o atleta destaca Tecka, um povoado minúsculo de pouco mais de mil habitantes, isolado em plena Ruta 40, uma das estradas mais cênicas (e inóspitas) de todo o continente.

Tive uma sensação de impotência, pois o local tinha uma única surda que nunca havia aprendido a língua de sinais. Estava totalmente isolada de tudo"

Juan Pablo Savonitti -ultramaratonista - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A saga tem o objetivo de propagar informações sobre a linguagem dos sinais
Imagem: Arquivo pessoal
Juan Pablo Savonitti -ultramaratonista - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Em cada vilarejo, ele busca locais públicos para dar palestras e contar sua história
Imagem: Arquivo pessoal

Em tempos de pandemia, Savonitti propõe soluções simples com efeitos que visam a inclusão daquela gente que não pode ouvir, como máscaras transparentes para que os surdos possam visualizar a boca de seu interlocutor.

E é por casos como esse que ele segue correndo atrás.

O início

As surdezes dos pais Silvia Lepori (71) e Gianni Savonitti (87), associadas a uma necessidade de promover a língua dos sinais, são os principais motivos para o filho, que tem residência fixa na capital búlgara, correr até Prudhoe Bay, no Alasca.

Antes de largar tudo para cruzar o continente, sua academia ao ar livre eram montanhas como Triglav, na Eslovênia, e Pirin, na Bulgária.

"Em um dado momento, me cansei de fazer corridas e de competir. Então decidi correr as três Américas", pontua esse atleta que tem como inspiração (depois dos próprios pais) o nadador Sean Conway, famoso por ter sido o primeiro a nadar ao redor da Grã-Bretanha.

Das competições para a estrada: a corrida com um objetivo maior - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Das competições para a estrada: a corrida com um objetivo maior
Imagem: Arquivo pessoal

Duas semanas antes de iniciar a viagem, vendeu seu laptop por 50 mil pesos argentinos (R$ 3.800, aproximadamente) e, com o dinheiro, deu início ao projeto que, inicialmente, contava também com o apoio de uma rede de supermercados na Argentina que lhe ofereceu um cartão com créditos para fazer compras.

Como lembra Savonitti, um dos momentos mais desesperadores foi chegar em Arica "totalmente zerado e sem saber o que eu ia comer à noite".

Hoje em dia, segue a viagem com apoio de secretarias de esporte, turismo e desenvolvimento social que oferecem hospedagem em ginásios ou clubes, e de hoteleiros ou membros do CouchSurfing, rede em que os membros disponibilizam sua residência para viajantes.

A meta de chegar ao Alasca correndo está programada para ser atingida no final de 2021 e conta com uma campanha de financiamento coletivo — 40% da arrecadação serão destinados à World Federation of the Deaf (Federação Mundial de Surdos).

Juan criou um financiamento coletivo para ajudar nos custos da empreitada; parte do dinheiro será doado a uma instituição - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juan criou um financiamento coletivo para ajudar nos custos da empreitada; parte do dinheiro será doado a uma instituição
Imagem: Arquivo pessoal

Não fosse a pandemia, seriam "entre 900 e mil dias correndo, em quase 3 anos".

Assim como explica Savonitti, ele não corre apenas por conta da paisagem, mas pela conexão com a natureza, "onde escuta os animais e o silêncio".

E desde 2019, passou a escutar também aqueles que não têm voz.