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A história e os materiais rústicos do sertão inspiram grandes estilistas

Coleção "Carne Seca ou um Turista Aprendiz em Terra Áspera" do estilista Ronaldo Fraga - Eduardo Anizelli/Folhapress
Coleção "Carne Seca ou um Turista Aprendiz em Terra Áspera" do estilista Ronaldo Fraga Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

Gustavo Frank

De Nossa

13/07/2020 04h00

A cultura rica do sertão criou diálogos com as passarelas de moda. "O grande âmago da cultura brasileira está no Nordeste", defende o estilista Ronaldo Fraga em conversa com Nossa.

Embora mineira, Zuzu Angel foi a primeira a retratar os detalhes da história nordestina nas peças da sua primeira coleção, no final dos anos 60, intitulada "Lampião e Maria Bonita, os Reis do Cangaço".

Lampião, Maria Bonita e seu bando criaram fascínio para a estilista, assim como inspiração e impulsionador da criatividade, por elaborarem e executarem os próprios guarda-roupas e acessórios, usando elementos da caatinga, "sendo os primeiros a ousarem a efetiva moda com brasilidade".

A coleção foi apresentada nos Estados Unidos, em 1970. Trabalhada em seda pura com estampas miúdas sobre fundo preto, em modelagem de macacões com saia-calça ou falsa-saia, cobrindo os joelhos (o comprimento à época era chamado à francesa "mi-mollet"), abertos na frente com zíper e com acessórios de couro.

Zuzu Angel - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Peças da coleção "Lampião e Maria Bonita, os Reis do Cangaço"
Imagem: Arquivo Pessoal

Peças da coleção "Lampião e Maria Bonita, os Reis do Cangaço" - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Peças da coleção "Lampião e Maria Bonita, os Reis do Cangaço"
Imagem: Arquivo Pessoal

Foram usadas ainda tiras finas de verniz preto com ilhoses de metal prateado que cruzavam o peito e a cintura, inspirando cartucheiras parar criar o chamado "charme das cangaceiras".

Além desses, as modelos traziam também acessórios como cinturões de seda preta, com chapas de metal dourado incrustadas de pedras preciosas brasileiras, chapéus de palha baku e botas justas de pelica, cano longo.

A coleção surgiu a partir de três grupos: as baianas, o casal Lampião e Maria Bonita e as rendeiras.

As baianas

Peças da coleção "Lampião e Maria Bonita, os Reis do Cangaço" - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Peças da coleção "Lampião e Maria Bonita, os Reis do Cangaço"
Imagem: Arquivo Pessoal

O grupo das baianas representava a mulher que se tornou inesquecível graças a Carmen Miranda, como argumentava a estilista ao apresentar a coleção.

Zuzu Angel dizia não buscar inspiração diretamente em Carmen, mas em como a atriz se vestia no estilo da Bahia, que a designer considerava o único estilo nativo brasileiro. Então, "naturalmente" houve analogia com sua indumentária.

Para a estilista, Carmen exagerava na caracterização, mas as referências teriam sido empregadas com bom gosto, o que de fato foi observado pelas diversas críticas, sempre elogiosas, publicadas nos EUA.

Lampião e Maria Bonita

Peças da coleção "Lampião e Maria Bonita, os Reis do Cangaço" - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Peças da coleção "Lampião e Maria Bonita, os Reis do Cangaço"
Imagem: Arquivo Pessoal

Os "bandidos dos anos 20", que chegaram a ser comparados a Robin Hood e aos personagens Bonnie and Clyde nas publicações norte-americanas, criminosos cuja vida virou filme em 1967 e, portanto, referência mais contemporânea.

O filme estadunidense teve enorme repercussão e, por sua influência nos anos 30, tornaram-se tendência de moda naquele momento.

As rendeiras

Peças da coleção "Lampião e Maria Bonita, os Reis do Cangaço" - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Peças da coleção "Lampião e Maria Bonita, os Reis do Cangaço"
Imagem: Arquivo Pessoal

O grupo das rendeiras foi tema para os vestidos de noiva, com aplicações de rendas artesanais únicas. O desfile transcorreu ao som de músicas brasileiras como as de Martinho da Vila e folclóricas, como "Mulher Rendeira".

"Carne Seca ou um Turista Aprendiz em Terra Áspera"

"Carne Seca ou um Turista Aprendiz em Terra Áspera" - Reprodução - Reprodução
Desfile da coleção de inverno "Carne Seca ou um Turista Aprendiz em Terra Áspera", de Ronaldo Fraga
Imagem: Reprodução

Em tempos mais atuais, Ronaldo Fraga fez do couro a matéria-prima principal para a sua coleção de inverno, em 2014, "Carne Seca ou um Turista Aprendiz em Terra Áspera".

A paixão pela literatura, mais especificamente por Graciliano Ramos, foi o ponto de partida para as suas criações.

"A 'Carne Seca' fala de resistência. De um país que resiste, uma cultura que resiste", argumenta. "A literatura sempre vai ser um fio condutor na linha de pesquisa para um projeto que vai gerar imagens. A palavra é consumida por diferentes pessoas, mas quem cria a imagem é você. Acho isso fascinante".

Mineiro, assim como Zuzu Angel, embora apaixonado pela cultura nordestina, Ronaldo acredita que seu "olhar estrangeiro" é uma das principais armas para retratar esse universo.

"Desde cedo, uma das melhores coisas que a moda me trouxe foi me levar para universos que eu não iria e pessoas que eu não conheceria", conta.

Vegetação nordestina

Observar a paisagem do Nordeste foi primordial para Ronaldo criar suas peças. Ao Nossa, ele cita como a caatinga criou o background filosófico da coleção.

"O sereno faz com que a vegetação da caatinga amanheça um pouco mais verde. A chuva faz com que ela mude completamente. É sobre isso: resistência e renovação", argumenta.

O estilista criou o cenário do desfile a partir da mesma técnica de observação: "Observar essa vegetação nos ensina muito, porque é possível fazer um paralelo entre a moda e a cultura de um determinado local".