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Toque de recolher, crendice e lei seca: brasileira vive quarentena no Sudão

Bê não conseguiu formular uma "rota de fuga" antes de fecharem as fronteiras: ficou "ilhada" com uma mochilinha de roupas na região mais islâmica do país - Arquivo pessoal
Bê não conseguiu formular uma "rota de fuga" antes de fecharem as fronteiras: ficou "ilhada" com uma mochilinha de roupas na região mais islâmica do país
Imagem: Arquivo pessoal

Adriana Setti

Colaboração para Nossa

19/04/2020 04h00

Rodando a África Oriental sozinha desde novembro de 2018, a produtora Bê Jorge, de 37 anos, viveu incontáveis experiências pouco convencionais. Alimentou hienas na Etiópia, encontrou gorilas nas montanhas de Uganda e, na divisa entre a Zâmbia e o Zimbábue, sobrevoou as Cataratas Vitória de ultraleve. Também enfrentou épicas travessias de ônibus pelos atoleiros moçambicanos, escalou um vulcão ativo no Congo e driblou cantadas em todas as línguas bantu.

Intercalando momentos de lazer com outros de trabalho voluntário, e deixando a vida levar ao invés de fazer planos a longo prazo, a paulista de São Simão acostumou-se a lidar com o imprevisto. Só não estava preparada para ficar presa no Sudão, no nordeste da África, com um punhado de dólares no bolso e algumas mudas de roupa numa mochilinha de mão. "Fui assistindo as coisas acontecerem sem conseguir traçar uma rota de fuga", diz Bê, que desde 9 de março está em quarentena na cidade portuária de Port Sudan, de 500 mil habitantes.

O Egito é logo ali

Após cruzar a Etiópia de sul a norte, a produtora enfrentou dois dias de ônibus (com direito a mais de três horas de burocracia e revistas na fronteira) para chegar ao Sudão, no início de março. Sua primeira parada foi Cartum, a capital do país, onde se uniu a dois viajantes brasileiros para participar de uma expedição pelo deserto da região da Núbia.

A ideia era conhecer as pirâmides de Meroé, às margens do rio Nilo. Visitado por cerca de 800 mil estrangeiros ao ano (grande parte deles em busca das maravilhas subaquáticas do Mar Vermelho), o Sudão guarda centenas dessas construções, que serviram como tumbas para os reis e rainhas do reino de Kush, em um dos sítios arqueológicos mais impressionantes da África, tombado como Patrimônio Mundial pela Unesco.

Passeio pelo Sudão antes da quarentena

Depois de explorar as pirâmides e templos erguidos há quase 3 mil anos, Bê deixou a sua mala na fronteira com o Egito, que seria o próximo destino da viagem, e partiu para Port Sudan, no sudeste do país, levando apenas uma mochilinha. "Meu visto ainda estava válido e queria conhecer o litoral do Mar Vermelho", conta.

Para viajar gastando pouco, além de trabalhar em troca de hospedagem e alimentação pelo WorldPackers - o AirBnb do voluntariado - sempre que possível a produtora tenta descolar um sofá amigo pela plataforma CouchSurfing.

Foi a primeira vez em que realmente tive dificuldades de encontrar uma casa, porque a maioria das pessoas não hospeda mulheres sozinhas nesta região, a mais islâmica do país, influenciada pela Arábia Saudita"

Contrariando seus próprios princípios, resolveu apelar, enviando pedidos até mesmo a pessoas sem referências de outros hóspedes no site. Assim conheceu Mohamed, que ganhou sua confiança contando que já havia estado no Brasil e mandando até um "bom dia".

Aos 27 anos, Mohamed comanda a empresa da família, de logística portuária, cujo escritório fica embaixo do seu apartamento, onde vive sozinho. Em um edifício antigo de três andares de frente para o porto de Port Sudan, o imóvel tem três quartos, sendo uma suíte, um banheiro extra, sala espaçosa, cozinha e terraço. "O Sudão é um país extremamente conservador, mas ele é viajado, tem a mente mais aberta, fala inglês e não é muçulmano praticamente", conta Bê.

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Bê com Mohamed, o sudanês "mente aberta" que ela conheceu pela plataforma Couchsurfing e aceitou hospedá-la
Imagem: Arquivo pessoal

O dia em que o Sudão parou

Após sete dias acampando pelo deserto e dormindo em casas típicas núbias, seguidos de uma odisseia de ônibus da cidade de Dongola até Port Sudan, Bê aproveitou o quarto privê com ar condicionado para recobrar forças. Quando já estava pronta para seguir viagem, no dia 12 de março, ficou sabendo que as fronteiras do Sudão com o Egito estavam fechadas, devido ao primeiro caso confirmado de coronavírus no país.

No começo, estava otimista, achando que isso ia durar só uns dias"

"Para esperar a reabertura, ainda cheguei a comprar uma passagem para Kassala", diz, referindo-se à cidade do nordeste do Sudão, aos pés das montanhas de Taka. "Mas o Mohamed me convenceu de que era mais seguro ficar aqui, onde já estava acolhida e bem acomodada".

Nesse momento, Bê se lembrou de seus dias em Cartum, hospedada em um apartamento com mais 15 pessoas, no qual dividiu um quarto com quatro meninas (algo comum na vida de um couchsurfer viajando pela África). E decidiu ficar. "Ele é o meu anjo da quarentena".

Poucos dias depois, 15 de março, o país fechou todas as fronteiras por terra e aeroportos, declarando estado de emergência sanitária. O transporte interurbano foi suspenso e o toque de recolher passou a valer das 20 às 6 horas. "Cogitei procurar a embaixada brasileira. Mas, para voltar para casa, teria que pegar vários voos. Fora isso, meu apartamento em São Paulo está alugado e o jeito seria ir para a casa dos meus pais, no interior, que têm mais de 70 anos. Então concluí que o melhor era ficar por aqui", conta.

Minha mãe ficou apavorada quando as fronteiras foram fechadas, mas acho que agora ela está um pouco mais tranquila"

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Uma das poucas turistas ainda no país, Bê chama a atenção dos moradores da cidade portuária
Imagem: Arquivo pessoal

A nova rotina

Ainda que seja permitido sair durante o dia, o calor é sufocante e as poucas atrações da cidade, como as agências de mergulho, estão fechadas. Em um de seus passeios pelos arredores do porto, a brasileira de longos dreadlocks e corpo tatuado foi abordada por um jovem que gritava "I love you! I love you!" e foi prontamente socorrida pelo grupo de senhores que passa o dia tomando chá em frente à loja da esquina.

Chamo muita atenção pelo meu visual e devo ser a única turista no país atualmente. Também me chamaram de corona duas vezes pelas ruas. Muita gente aqui acha que os estrangeiros são os culpados por introduzir o vírus no país"

Por essas e outras, tem passado a maior parte do tempo em casa. "Pedi para o Mohamed imprimir umas palavras-cruzadas e ele me conseguiu umas agulhas para eu aprender tricô e crochê". Além de espaço e tempo de sobra, ela também vem abusando do wi-fi de boa qualidade, algo raríssimo no Sudão. Dessa forma, consegue assistir a séries, fazer um curso de inglês online e se comunicar com amigos e familiares. Ou seja, cumprir a rotina básica de quarentener.

"No começo foi difícil, porque estava muito embalada no ritmo de viagem e comecei a notar que o confinamento estava me deixando irritada e ríspida, mas logo caiu a ficha de que controlar a situação não estava ao meu alcance e relaxei". Da cobertura do prédio, ela consegue ver o pôr do sol e bisbilhotar os vizinhos orando a Alá em seus tapetinhos.

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Da cobertura do edifício onde passa a quarentena, consegue ver o por do sol e os moradores em oração a Alá
Imagem: Arquivo pessoal

Também adotou os corvos do pedaço como animais de estimação e se diverte vendo os soldados mandando as pessoas para casa após o toque de recolher. Na semana passada, finalmente conseguiu ter a sua mala de volta, resgatada por um amigo de Mohamed.

Dentro de casa uso shorts e blusinha porque me sinto à vontade, mas me cubro inteira para sair na rua"

Assim como a maioria dos sudaneses, Bê tem saído para se divertir às sextas-feiras, o dia de descanso nacional. Aproveitando a folga semanal, Mohamed e seus amigos já levaram a forasteira para passear no mercado de peixes, para fazer churrasco no deserto e até dar uma volta de barco. "Fico tão revoltada que só os homens podem nadar no mar aqui no porto que, na semana passada, eles conseguiram um pescador para me mostrar umas piscinas naturais no Mar Vermelho", conta.

Nesse parêntese do confinamento, ela nadou entre tartarugas gigantes, de maiô, para espanto do barqueiro. "Eu até pediria para passear mais, mas fico na minha porque sei a dificuldade que é conseguir gasolina aqui". O país enfrenta sérios problemas de abastecimento de combustível e é normal que uma pessoa tenha que passar até três dias numa fila de posto.

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Numa "fuga" confinamento, conseguiu passear de barco e até nadar, atividade proibida para as mulheres locais
Imagem: Arquivo pessoal

Semente de acácia com gengibre

Com 32 casos confirmados e cinco mortes no país, segundo os dados da Organização Mundial de Saúde, o governo do Sudão decretou quarentena de três semanas na capital desde ontem, 18 de abril. Ainda assim, segundo relatou a rede Al Jazeera, alguns líderes religiosos do país vêm negando a existência do vírus e incitando a população a não seguir as recomendações da OMS.

O movimento na cidade até diminuiu, mas só vi dois ou três gatos pingados de máscara"

Ocupando a posição de número 168 (de 189) no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano, e com mais de 50% de seus 40 milhões de habitantes vivendo abaixo da linha da extrema pobreza, o Sudão também está às voltas com crendices populares.

Há quem pense que as sementes de acácia e sândalo, bem como o gengibre, garantem imunidade, o que fez os preços dispararem no mercado. Mesmo dispondo de apenas 200 leitos de UTI em todo país, grupos de oposição ao governo também têm organizado manifestações, acusando o primeiro-ministro Abdalla Hamdok de usar a pandemia como pretexto para desviar a atenção da crise econômica na qual o Sudão se encontra.

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O Sudão ocupa a posição de número 168 (de 189) no ranking do IDH e tem mais de 50% de seus habitantes abaixo da linha da extrema pobreza
Imagem: Arquivo pessoal

Colocando ordem na casa

Nos primeiros 14 dias, o toque de recolher em Port Sudan ia das 20 às 6 horas. Mesmo assim, muita gente continuava aproveitando para circular pelo calçadão no fim da tarde, onde tem até mesa de sinuca.

Para evitar aglomerações, o momento de ir para casa foi antecipado para as 18 horas. "Achei ótimo, porque até então os amigos inseparáveis do Mohamed vinham todo santo dia aqui, entravam com o pé sujo de areia e largavam as latinhas de energético por todos os lados", diz a produtora.

Desde que chegou a Port Sudan, a nova hóspede vem colocado ordem na casa. "Meu exercício aeróbico está sendo varrer com uma vassourinha curta de palha, que me obriga a ficar abaixada e tem sido melhor para o meu alongamento do que o aplicativo de yoga que venho tentando usar para ficar mais tranquilinha", diz Bê, que proibiu a entrada de sapatos no apartamento e decretou guerra à poeira. "Nunca vi essa casa tão arrumada", disse Usama, amigo de Mohamed.

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Bê divide as funções da casa com Maria, imigrante do Sudão do Sul, que trabalha como diarista na casa de Mohamed
Imagem: Arquivo pessoal

Até a aparição da brasileira, a bagunça da turma sobrava para Maria, 54 anos, imigrante do Sudão do Sul que trabalha como diarista na casa de Mohamed. Feliz em dividir as tarefas com Bê, ela intercala o serviço com o relato de passagens dramáticas de sua vida, como ter sido obrigada a se casar aos 14 anos, com um homem 23 anos mais velho.

Outro dia, trouxe as poucas fotos que guarda para mostrar à nova amiga. A maior parte de seu acervo, no entanto, perdeu-se quando o bairro onde mora foi incendiado, no conflito tribal que sacudiu a cidade no ano passado, culminando em 37 pessoas mortas a tiros ou decapitadas. Por precaução, a senhora de sorriso branquíssimo carrega uma mala de roupa ao trabalho todos os dias - caso uma nova guerra a impeça de volta para casa.

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Todos os dias, Maria leva uma mala de roupa ao trabalho: precaução se uma guerra a impedir de voltar para casa
Imagem: Arquivo pessoal

Sem perder o bom humor mesmo ao relatar como o irmão a salvava das surras que levada do marido, Maria também relembra os bons tempos em que podia tomar uma cervejinha - nostalgia compartilhada por Bê - e andar com roupas leves pelas ruas de Juba, capital de sua terra natal, no Sudão do Sul, onde a religião predominante é a católica.

"A gente está acostumado a isso de não poder sair de casa, porque vira e mexe acontece algum conflito e temos toque de recolher", conta Mohamed, que, vira e mexe, descola uma garrafa de uísque no mercado negro - o álcool é proibido no país.

Devido à dificuldade de conseguir moeda estrangeira na Etiópia, Bê acabou chegando ao Sudão com apenas US$ 400, dos quais restam US$ 150. Uma vez que cartões de crédito internacionais não funcionam no país, este é todo dinheiro do qual dispõe até o dia de aberturas de fronteiras.

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Bê com o soldado que vigia o porto da cidade e manda as pessoas depois do toque de recolher
Imagem: Arquivo pessoal

Para completar, seu visto está vencido e não se sabe quando o escritório de imigração será aberto, para que possa regularizar a situação. Por isso, é ainda mais grata ao seu anjo da quarentena. "Estou engordando horrores, porque receber hóspedes com muita comida é da cultura deles", diz Bê, que já se adaptou à culinária local. "Eles comem muito pão com batata, feijão, carne moída, salada de pepino, tomate e cebola bem picadinha".

A nova moradora de Port Sudan também vem sucumbindo ao chá com toneladas de açúcar e aproveitando a abundância de sucos de manga, melancia e tamarindo. "Nesta região também tem muita comida árabe, como shawarma, húmus e kafta". No próximo dia 22 de abril, Bê celebraria seu aniversário de 38 anos com a mãe e a irmã, no Egito. Mas, ao que tudo indica, terá que brindar com arak, o álcool caseiro que quebra o galho na lei seca sudanesa, e uns traguinhos de narguilé.