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Entenda o projeto para proibir cruzeiros no centro de Veneza

Veneza: canais são atração na cidade - Jan Sandvik / EyeEm/Getty Images
Veneza: canais são atração na cidade Imagem: Jan Sandvik / EyeEm/Getty Images

Tatiana Girardi

05/05/2021 15h03

Após quase uma década de polêmicas e discussões, o governo da Itália aprovou no fim de março um decreto-lei que determina, de uma vez por todas, que navios de 40 mil toneladas ou mais, como os de cruzeiro, não poderão mais atravessar o centro histórico de Veneza.

Na Itália, um "decreto-lei" é semelhante a uma medida provisória e precisa ser confirmado pelo Parlamento - falta apenas o voto da Câmara -, mas o amplo apoio registrado no Senado (168 votos a favor, nenhum contrário e 26 abstenções) não deixa dúvidas de que a iniciativa se tornará definitiva.

O decreto foi publicado oficialmente em 1º de abril e dá 60 dias para a Autoridade do Sistema Portuário do Mar Adriático Setentrional lançar um "concurso internacional de ideias" para escolher uma solução definitiva para um problema que há anos ameaça o patrimônio histórico de Veneza e causa preocupação na Unesco.

O Comitê do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura chegou a ameaçar colocar a capital do Vêneto em uma lista de "lugares em risco" caso transatlânticos continuassem atravessando o coração da cidade.

Tradicionalmente, navios de cruzeiro cruzavam a Bacia de San Marco e o Canal de Giudecca para chegar a um terminal de passageiros ao lado da principal estação ferroviária de Veneza - são famosas as fotos que mostram o contraste entre o gigantismo desses transatlânticos e a fragilidade das construções históricas da cidade.

Em diversas ocasiões, essa navegação provocou acidentes, como a colisão de um navio da MSC contra um cais no terminal. O decreto do governo estabelece que, até a aprovação de uma solução definitiva, os grandes navios usem uma via marítima entre a Bocca di Malamocco, um dos três acessos do Adriático à Lagoa de Veneza, até o porto comercial de Marghera.

Com isso, turistas de cruzeiros descerão na parte continental de Veneza, fora do centro histórico, que será poupado dos perigos provocados pela navegação de transatlânticos. Mas ainda existem dúvidas a respeito da mudança, já que projetos semelhantes foram aprovados em 2013 e 2017, porém nunca saíram do papel.

Em entrevista à ANSA, o presidente da ONG ambientalista Legambiente Veneto, Luigi Lazzaro, diz que a pandemia de covid-19 resolveu o "tráfego perigoso" nos últimos meses, mas que o problema pode voltar a ocorrer com o fim da crise sanitária.

"Com a saída da pandemia e a retomada das atividades econômicas, voltarão também os cruzeiros, e muito rapidamente veremos os navios, inferiores ou superiores a 40 mil toneladas, continuando a 'reverenciar' em frente ao campanário de San Marco", afirma.

A fala encontra eco em um anúncio feito pelo governador do Vêneto, Luca Zaia, em 14 de abril, quando ele garantiu que a mudança para Marghera era "iminente", mas que o porto ainda não estava apto a receber viajantes.

Para Lazzaro, isso ocorre "porque falta coragem por parte dos responsáveis políticos". "Pense que a decisão pelo deslocamento para Marghera foi tomada, oficialmente, em 2017, mas nunca foi aplicada. A Legambiente já pede isso desde 2013. Para adaptar o cais e as estruturas de acolhimento em Marghera, seriam necessários de quatro a 10 meses", ressalta o presidente da ONG no Vêneto.

Lazzaro, no entanto, critica "anúncios incoerentes e mudanças repentinas de posição" nos políticos "com o objetivo de atrasar as decisões". Para ele, a mudança para Marghera seria "um problema a menos", o que permitiria concentrar forças na discussão sobre o "futuro dos portos de Veneza à luz das mudanças climáticas".

O ambientalista é crítico da ideia de convocar um "concurso de ideias" ao invés de debater o problema diretamente com a sociedade civil para encontrar uma solução definitiva.

"Parece um jogador que lança a bola na arquibancada a cada ação, esperando o apito final. Infelizmente, em Veneza, falta um árbitro, e existe o risco de um enésimo adiamento de soluções concretas. Nos últimos anos, foram apresentados muitos projetos ou ideias, mas de maneira desordenada e sem levar em consideração todos os aspectos que compõem esse problema", acrescenta.

Para a Legambiente, a solução não é apenas proibir o tráfego de grandes navios na Bacia de San Marco. Também é necessário recuperar o antigo polo industrial de Veneza e permitir somente o acesso de embarcações de tamanho adequado às características da lagoa.

"Há uma enorme oportunidade de retomada e renascimento, mas é importante que a política pare com o atraso e assuma suas responsabilidades. Espero que a política encontre um árbitro à altura, capaz de transformar esse concurso de ideias em algo a mais. Talvez um laboratório de inovação, de adaptação e de resiliência composto por especialistas e técnicos jovens e qualificados. Aqui poderiam transitar as propostas para defender o futuro de Veneza e, sobretudo, de uma nova geração que deve ser protagonista das decisões do presente", conclui Lazzaro.

Por meio de um comunicado, Ukko Metsola, diretor-geral para a Europa da Associação Internacional de Linhas de Cruzeiro (Clia), entidade que representa 95% do setor, disse à ANSA que "felicita" o anúncio sobre as rotas de acesso a Veneza e defende a retirada dos grandes navios do Canal de Giudecca".

"Reconhecemos que o acordo e a implementação de novas vias de acesso a Veneza é um projeto de longo prazo e exigirá medidas legislativas. Notamos, portanto, que existirão medidas temporárias necessárias durante um período. Continuaremos a trabalhar em estreita colaboração com as autoridades italianas e as partes relevantes interessadas, à medida que essas recomendações se transformarem em ações políticas concretas", acrescentou Metsola.