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"Alimentar os sonhos", a receita da pernalta Raquel Potí para não sucumbir

Raquel Poti performa durante a Parada LGBT+ no Rio de Janeiro, em 2018 - Carl de Souza/AFP
Raquel Poti performa durante a Parada LGBT+ no Rio de Janeiro, em 2018
Imagem: Carl de Souza/AFP

12/05/2021 11h54

Ainda criança, Raquel Potí se apaixonou pelas festas populares. Já adulta, envolveu-se visceralmente com o carnaval, criando alas de pernaltas em alguns dos principais blocos de rua do Rio de Janeiro. Com a pandemia, precisou se reinventar.

"Com quatro anos, a Folia de Reis foi à vila de pescadores onde eu morava em Pedra de Guaratiba (zona oeste). Quando vi a Folia, o palhaço me encantou profundamente, nunca mais esqueci. Passei a vida buscando aquela magia de novo. Quando percebi que ela se manifesta na cultura popular, me encontrei", conta Potí à AFP.

Em sua busca, viajou pelo mundo, conviveu com comunidades que utilizam a cultura para promover o desenvolvimento humano e encontrou as pernas-de-pau.

"As pernas-de-pau são um brinquedo ancestral, um instrumento muito poderoso. São um canal de autoconhecimento, dão visibilidade para pessoas que normalmente são invisíveis", explica ela, que mede 1,55 metro.

Há sete anos, Potí, de 37, desfila como pernalta no carnaval e oferece oficinas nos jardins do Museu de Arte Moderna, no centro do Rio.

Desde então, formou mais de 500 pessoas e criou alas de pernaltas em blocos como Cordão do Boitatá, Cacique de Ramos e Carmelitas.

O sucesso rendeu convites para trabalhar em ações institucionais em empresas e organizações. Com eventos cancelados pela pandemia, foi buscar alternativas.

Gigantes Sonhadores

Reproduzindo um cortejo como os que arrastam multidões no carnaval, os encantados ganham vida em pernaltas com figurinos multicoloridos de materiais recicláveis - AFP - AFP
Reproduzindo um cortejo como os que arrastam multidões no carnaval, os encantados ganham vida em pernaltas com figurinos multicoloridos de materiais recicláveis
Imagem: AFP

"O carnaval é como um Maracanã lotado com todos torcendo pelo mesmo time. Quando a gente não tem essa possibilidade, precisa alimentar os sonhos para não sucumbir à realidade", afirma Potí.

Com esse espírito, concebeu e dirigiu o Ritual Cortejo Musical Gigantes Sonhadores, lançado em abril no YouTube.

Produzido pela Limento Gestão de Eventos, com direção musical de Thaís Bezerra, o espetáculo celebra os povos nômades (ciganos, companhias de teatro itinerante), "os grandes responsáveis por nossa diversidade cultural".

Reproduzindo um cortejo como os que arrastam multidões no carnaval, os encantados ganham vida em pernaltas com figurinos multicoloridos de materiais recicláveis, acompanhados por acrobatas e músicos, que tocam ritmos brasileiros como maracatu e carimbó.

"Foi uma forma que a gente encontrou pra falar do carnaval, o maior ritual coletivo do Rio de Janeiro, talvez do Brasil, já que este ano a gente não teve", explica Potí.

Luz no fim do túnel

A produção rendeu frutos como o Gigantes de Pedra, que celebra personalidades do bairro onde Potí nasceu, e o de Mangaratiba, no sul fluminense. - AFP - AFP
A produção rendeu frutos como o Gigantes de Pedra, que celebra personalidades do bairro onde Potí nasceu, e o de Mangaratiba, no sul fluminense.
Imagem: AFP

O espetáculo foi contemplado pela lei Aldir Blanc, sancionada em junho de 2020 para socorrer o setor cultural, duramente afetado pela pandemia e pela escassez de recursos.

A lei destinou R$ 3 bilhões a estados, municípios e Distrito Federal, encarregados de distribui-los para manter espaços culturais e pagar ajuda emergencial aos trabalhadores do setor que tiveram suas atividades interrompidas.

Segundo cifras oficiais, até dezembro de 2020, cerca de 700 mil trabalhadores foram beneficiados no país.

"A lei Aldir Blanc chegou como uma luz no fim do túnel, um respiro para o nosso setor", diz Potí, que com os Gigantes Sonhadores impactou 27 profissionais, como a figurinista Alessandra Santhiago.

"Fiquei um ano sem trabalho. Foi um alívio trabalhar durante a pandemia", conta Santhiago.

A produção rendeu frutos como o Gigantes de Pedra, que celebra personalidades do bairro onde Potí nasceu, e o de Mangaratiba, no sul fluminense.

Este último, financiado pela Vale Cultural, foi adiado para o segundo semestre por um atraso na avaliação da Secretaria Especial da Cultura, diz Potí.

"Diversos projetos como o nosso estão travados sem possibilidade de realização, já com dinheiro depositado, pela falta de um parecer", critica.

Em abril, a Câmara dos Deputados aprovou a prorrogação do uso dos recursos remanescentes da lei Aldir Blanc, R$ 774 milhões, até 31 de dezembro de 2021. O texto aguarda sanção presidencial.

"A implementação dessa lei foi uma luta da oposição ao governo. Precisamos muito que seja prorrogada e que novos editais sejam abertos porque estamos longe de ter um cenário confortável pra cultura novamente. Nunca foi tão confortável, mas está insalubre", afirma Potí, que mora com o filho de quatro anos na Tijuca (zona norte) e recebe ajuda da família para se manter.

"A pandemia escancarou violências e exclusões que nossa sociedade impõe sobretudo aos pretos, pobres, o que é histórico, mas as pessoas se importavam menos. Agora há uma urgência de transformação da sociedade", reflete.