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Olhares sobre os sabores, belezas e saberes de nosso país

O que é ser do Nordeste, de olhar atento às riquezas e desigualdades

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Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colaboração para Nossa

Com a curadoria de Elba Ramalho

20/07/2021 04h00

Para muita gente o Nordeste é uma coleção de paisagens deslumbrantes: praias, cachoeiras, lajedos, montanhas... Sim, a Natureza impressiona em toda parte, porque também existe a beleza menos óbvia do Sertão, da caatinga, da terra árida. Um lugar onde a beleza existe um pouco de emboscada, fingindo que foi embora mas surgindo de repente quando menos se espera.

Ser nordestino, porém, significa habitar uma região maior que a paisagem. Uma paisagem da memória e da história, uma sensação de passado compartilhado.

A História do Nordeste também tem abismos e belezas, tem aridez e fartura, tem destruição e energia criadora. Aquilo que o poeta João Cabral de Melo Neto chamou de "morte e vida severina".

Seca em Vitória da Conquista, Bahia - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Seca em Vitória da Conquista, Bahia
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Ser nordestino é ter a consciência de um passado de riqueza — a riqueza da cana-de-açúcar, a riqueza do algodão, do cacau — e um passado de contrastes sociais violentos. Um passado de um poder que não volta, mas que deixou alicerces de autoestima, do espírito independente de quem já se sentiu dono de seu próprio destino.

O Brasil cresceu na direção do Sudeste e do Sul, mas o Nordeste manteve esse espírito de autonomia, o espírito do não-servilismo, de pensar por conta própria. De estar permanentemente alerta, pronto para agir.

Maceió, Alagoas - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Maceió, Alagoas
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Euclides da Cunha se surpreendia com o sertanejo, que parecia indolente e derrubado, mas se a situação exigisse era capaz de mobilizar toda sua energia em questão de segundos e entrar em ação com a rapidez de um raio.

Esse espírito sertanejo se espalha por toda uma cultura, alimentado por um milhão de histórias, de exemplos, de lições.

O nordestino é um prestador de atenção, no dizer do poeta Jessier Quirino. Um olho silencioso e atento que não perde nenhum detalhe, que não perdoa nenhum deslize; e uma memória que não esquece nada. Toda experiência adquirida vai para o imenso banco de dados de uma memória coletiva baseada em exemplos, em casos memoráveis, em associação de ideias. A experiência nova é sempre checada de encontro à lembrança coletiva do que deu certo e do que deu errado.

Pescador em Fortaleza, Ceará - Getty Images - Getty Images
Pescador em Fortaleza, Ceará
Imagem: Getty Images

Acima de tudo, o Nordeste tem que conviver com a desigualdade; e faz dela um elemento enriquecedor da experiência e formador do caráter. Nordestino convive com extremos. Nordestino aprende a contar com mudanças bruscas. Aprende a estar sempre pronto para recomeçar do zero.

É um contraste de espírito que se harmoniza com o contraste de paisagens. O Nordeste úmido, verde, fértil e sumarento da Zona da Mata fica a poucas horas do Nordeste árido, seco e espinhento do Sertão.

Se alguém se vira para um lado, percebe planuras sem fim, chapadas horizontais a perder de vista, cobertas de vegetação rasteira e rala. Mas... basta um movimento da cabeça, e do lado oposto se erguem os paredões pedregosos da serra, seus imensos rochedos pontiagudos apontados para o céu, como torres de castelo.

Uma das muitas paisagens naturais do Nordeste - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Uma das muitas paisagens naturais do Nordeste
Imagem: Getty Images/iStockphoto

E de castelos e desertos está cheia a memória dos folhetos de cordel contando histórias de reis cruéis e escravos valentes, de vaqueiros corajosos capazes de enfrentar um boi mal-assombrado e de donzelas estudiosas capazes de derrotar diante da corte a sabedoria de um conselho de anciãos.

Distante dos centros de poder e de decisão, o nordestino miúdo se engrandece ao encontrar um equilíbrio de sobrevivência no meio da Natureza e da História. Ele sabe que tem pouco poder sobre ambas, e aprende, com olho atento e espírito teimoso, a encontrar caminhos, a descobrir soluções, a amortecer os golpes mais perigosos, a sobreviver. Olha de longe, vê o formato de uma nuvem, adivinha o vento que a moldou. Escuta de longe o mugido de uma rês e sabe se ela está fugindo ou está voltando. Lê as estrelas, canta para elas, para que elas não o esqueçam.

Estátua do Barão de Rio Branco, em Recife, Pernambuco - Getty Images - Getty Images
Estátua do Barão de Rio Branco, em Recife, Pernambuco
Imagem: Getty Images

A aridez e a exuberância da Natureza se alternam do mesmo modo que em sua vida se alternam a catástrofe e a festa. Ele convive com ambas, aprende com ambas, cresce e se fortalece com ambas.

Hoje, o passado remoto do Nordeste encontra o futuro mais recente. A modernidade o invadiu do litoral para o interior. Na beira das rodovias, onde antigamente as barraquinhas vendiam frutas, hoje se vendem, além de frutas, mil capas de celular, DVDs piratas, pen-drives de forró. As duas pontas do Tempo se tocaram e estão produzindo um abalo, um balanço, uma sacudida nos costumes e nas maneiras de ser.

Entre o antigo e o novíssimo: João Pessoa, Paraíba - Getty Images - Getty Images
Entre o antigo e o novíssimo: João Pessoa, Paraíba
Imagem: Getty Images

O olho prestador de atenção registra tudo. Os nordestinos mais conservadores olham com desconfiança esses novos costumes, o wi-fi, a Internet, o celular onipresente. Mas é a mesma desconfiança com que seus avós olharam o jornal, o rádio, o cinema. E o Nordeste engoliu tudo isso.

Viajar hoje pelo Nordeste é encontrar o antigo e o novíssimo, a natureza e a tecnologia, as formas tradicionais de ver e de pensar adotando uma nova linguagem, um novo jargão. E adotando também uma maneira mais arguta e mais esperta de prestar atenção ao mundo, porque quanto mais o tempo passa mais o mundo começa a prestar atenção ao Nordeste.