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Reportagem

'Hippies do século 19': seita cristã defendia amor livre e prazer feminino

43º03'N, 75º36'O
Mansão da Comunidade Oneida
Oneida, Nova York, Estados Unidos

Em uma casa localizada a cerca de apenas 200 quilômetros da fazenda que sediou o festival mais famoso da cultura pop, em 1969, já existia uma sociedade alternativa que pregava o amor livre. Isso 120 anos antes de Woodstock.

Mal comparando, eles eram uma espécie de "hippies do século 19". Na verdade, uma comunidade cristã com ideias bem diferentes dos conceitos dominantes da época. Uma seita que permitiu liberdades raramente vistas às mulheres, mas que ao mesmo tempo defendeu práticas que os nazistas achariam interessantes.

A Oneida durou apenas poucas décadas. Mas seus membros deixaram uma marca na sociedade tão imprevisível quanto surpreendente.

Que lugar é esse

A Mansão Oneida é uma suntuosa propriedade no interior do estado de Nova York. Considerada patrimônio histórico dos Estados Unidos, ela funciona hoje como um misto de museu, hotel e casa de eventos.

A instituição sem fins lucrativos que administra o local explica, no site, que sua missão é "explorar questões sociais urgentes que ainda confrontam a sociedade hoje". Isso seria uma continuação do legado da Comunidade Oneida, "um dos mais radicais e bem-sucedidos experimentos sociais do século 19".

Tudo começou em 1848, quando o líder religioso John Humphrey Noyes e seus seguidores fundaram, nessa casa, uma comunidade cristã atípica. Ela defendia os preceitos do perfeccionismo, doutrina que defende que o retorno de Cristo já aconteceu, e que por isso é possível ser livre de pecados (logo, perfeito) ainda neste mundo, sem precisar esperar chegar ao paraíso.

Nas décadas seguintes, a comunidade cresceu até ter mais de 300 membros, no fim dos anos 1870. Todos levando um cotidiano comunal, em que continência sexual, casamentos grupais e uma prática chamada estirpecultura eram a norma.

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Sexo livre e prazer feminino

Comunidade Oneida em cartão-postal de 1907
Comunidade Oneida em cartão-postal de 1907 Imagem: Reprodução

A vida em Oneida exigia trabalho, e cada um fazia algo de acordo com suas aptidões. Era uma produção admirável, com fabricação de bolsas de couro, chapéus e móveis de jardim, por exemplo.

Tudo em prol da comunidade. Não existiam núcleos familiares nem mesmo casais, no sentido habitual do termo.

Noyes desenvolveu o chamado casamento complexo, um sistema de amor livre em que todos eram casados com todos.

O argumento para isso é a passagem bíblica que afirma que não existe casamento no céu. Então também não precisaria existir na terra.

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Só que ausência de casamento não significava uma vida sem sexo. Pelo contrário.

Mas muitas mulheres não queriam engravidar o tempo todo, e a comunidade não teria como sustentar o enorme berçário que brotaria de tanto amor livre. Então, surgiu uma diferenciação entre o amor amoroso e o amor propagativo.

O primeiro significava sexo pelo sexo. Curtição e nada mais.

O segundo era sexo para gerar filhos. A partir dessa distinção, os homens de Oneida passaram a praticar o que Noyes chamava de "continência masculina".

Era a versão dele para o "coitus reservatus". Nessa técnica, o homem posterga o orgasmo, tentando permanecer no pico da excitação, mas sem ejacular, o maior tempo possível.

Noyes defendia a prática porque, argumentava, com ela a comunidade evitava filhos indesejados e os homens adquiririam um autocontrole formidável. O sistema funcionou muito bem, segundo "The Utopian Reader", livro da editora da Universidade de Nova York sobre diversas utopias ao longo da história.

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Os cerca de 200 adultos adeptos ao "coitus reservatus" tiveram apenas 12 filhos não planejados em um intervalo de 20 anos. É um controle de natalidade bastante efetivo, segundo o historiador Lawrence Foster em um artigo na publicação científica "Australasian Journal of American Studies".

Mas ninguém começava dominando a técnica. Então, para introduzi-los sem maiores riscos de gravidez indesejada, mulheres na pós-menopausa ficavam responsáveis pelos jovens rapazes, enquanto os homens mais velhos ficavam com as moças.

Bem, pelo menos esse era o argumento. Tudo para controlar a ejaculação, que "drenava a vitalidade e adoentava os homens", e a gravidez, que "impunha uma carga pesada à vitalidade das mulheres".

Noyes tinha motivos pessoais para tanto. Harriet, sua esposa, passou por cinco partos traumáticos, em que quatro resultaram na morte do bebê.

Ainda assim, por que a comunidade de Oneida não optou por outros métodos contraceptivos? Em meados do século 19 a camisinha de látex de borracha já era uma realidade, afinal.

Para eles, a continência masculina priorizava uma intimidade maior, além de ser algo mais natural e saudável. Além disso, o prazer feminino ficava no centro da discussão, algo muito raro para a época (e depois).

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Os filhos

Comunidade Oneida
Comunidade Oneida Imagem: Reprodução

Quanto ao sexo com o intuito de ter filhos, a comunidade começou a seguir, a partir de 1869, a "estirpecultura", método que defendia uma reprodução controlada e seletiva. Ou seja, uma espécie de protoeugenia.

Noyes queria gerar crianças mais elevadas, física e espiritualmente. Então, aqueles que desejassem ter filhos se apresentavam diante de um comitê para terem suas qualidades morais avaliadas.

Uma nova ala na mansão foi construída para abrigar mulheres e homens que participaram do programa. Assim que os bebês paravam de mamar, eles eram separados da mãe e criados pela comunidade, em uma ala separada.

A mulher e o homem que geraram a criança podiam visitá-la, mas sem criar vínculos. Qualquer suspeita nesse sentido podia gerar uma suspensão.

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Ao longo de dez anos, 58 bebês nasceram dessa maneira. Dos dois aos 12 anos, cresceram sob a tutela de supervisores, sem pais. Segundo Alexandra Prince, em um artigo no "Zygon: Journal of Religion and Science", esse foi o primeiro experimento de eugenia, prática que mais tarde seria associada ao nazismo, nos EUA.

As mulheres

Comunidade Oneida
Comunidade Oneida Imagem: Reprodução

Além da independência sexual, mulheres tinham liberdades impensáveis no resto do país de meados do século 19. Podiam usar roupas mais práticas para o dia a dia e trabalhavam em funções tidas como masculinas pela sociedade.

Ellen Wayland-Smith, em "The Status and Self-Perception of Women in the Oneida Community" ("O status e a autopercepção das mulheres na Comunidade Oneida"), afirmou que homens e mulheres tinham status praticamente iguais. Todos estavam sujeitos à visão e à vontade de Noyes, mas não havia uma opressão maior às mulheres.

Essa centralização no líder acabou matando a seita, no entanto. Noyes, já idoso, tentou passar o comando para seu filho, que não tinha o mesmo carisma nem a liderança.

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Além disso, James Towner, um membro da comunidade, tentou tomar o controle para si, o que gerou um racha em Oneida.

No começo dos anos 1880, o sonho acabou. As pessoas abandonaram o casamento complexo e muitos assumiram relacionamentos monogâmicos. Em 1886, Noyes morreu.

Desfechos inesperados

A comunidade Oneida entre 1865 e 1875
A comunidade Oneida entre 1865 e 1875 Imagem: Domínio Público

Towner, um herói da Guerra Civil Americana, barbudo e com um olho só, pegou seus seguidores e cruzou o país. Estabeleceu-se na Califórnia e mudou de vida.

"Em sua nova casa, Santa Ana, ele se tornou proprietário de terras, um agricultor inovador e procurador municipal", diz uma antiga reportagem do jornal "Los Angeles Times". Depois, ajudou a liderar a criação de um dos mais famosos condados do país.

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Towner "foi eleito o primeiro juiz do Tribunal Superior do Condado de Orange", explica o jornal. Orange County foi criado em 1889, ao se separar do condado de Los Angeles. Como juiz, "Towner se mostraria implacável com o crime".

Curiosamente, Orange se tornaria, no século 20, um bastião do conservadorismo americano. Justo o condado que teve entre os fundadores "um comunista bíblico e propagador do amor livre".

Nas últimas décadas isso mudou e a população de Orange ficou mais diversa e progressista. Mas por muito tempo ele era o lugar "aonde bons republicanos iam morrer", segundo Ronald Reagan, presidente por dois mandatos e maior nome do Partido Republicano nos anos 1980.

Na Costa Leste, os ex-membros da comunidade fundaram uma empresa, a Oneida. No século 20, ela se tornou uma multinacional reconhecida e uma das maiores fabricantes de talheres do mundo.

Será que você tem um garfo deles em casa?

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Um ex-membro da Oneida também impactou a história americana. Charles Guiteau idolatrava Noyes, mas não conseguiu se adaptar à seita: não é porque o lugar prega amor livre que as pessoas sejam obrigadas a ficar com alguém.

Então, Guiteau se deu mal. Nada de amor livre para ele, que vivia rejeitado e chegou a sair de Oneida duas vezes.

Em 1881, ele assassinou o presidente do país, James Garfield. Foi executado na forca.

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