Maldição da múmia surgiu entre turismo predatório no Egito e culpa cristã

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25º44'N, 32º36'L
Tumba de Tutancâmon
Vale dos Reis, Quena, Egito
O Egito Antigo é algo tão central na história da humanidade que o próprio fascínio do Ocidente pelo tema já é, por si só, um objeto histórico. Entre altos e baixos de popularidade, lá se vão mais de 200 anos de encanto.
Nos anos 1810, Londres tinha um museu inteiro dedicado ao tema, o Egyptian Hall, na Rua Piccadilly. Lá, por exemplo, em 1821, o explorador italiano Giovanni Battista Belzoni exibiu uma réplica da tumba do faraó Seti 1º.
No ano seguinte, o linguista francês Jean-François Champollion decifrou os hierógllifos. Com a Pedra de Roseta, ele abriu um portal para um novo mundo, uma máquina do tempo que intrigaria multidões e faria os mais ousados se aventurarem pelo Nilo.
O feito de Champollion e a divulgação de Belzoni, que documentava e publicava suas expedições, deram início à chamada egitomania. Essa febre teve grande influência no Ocidente ao longo do século retrasado.
As aventuras de Belzoni naquela terra distante, repleta de templos, tesouros, múmias e grandes monumentos, atiçava a imaginação dos leitores. Muitos queriam ir para o Egito, ver de perto tudo aquilo.
Primórdios do turismo predatório

Na segunda metade daquele século, um empresário viu aí a oportunidade de transformar esses sonhos vitorianos em realidade. A Thomas Cook and Son, uma agência de viagens que encerrou as atividades somente em 2001, ajudou a lançar as bases para fazer da antiga terra dos faraós um destino turístico.
"Isso significava que os turistas podiam viajar e vivenciar o Egito. Era uma perspectiva emocionante e única, que levou a consequências incontroláveis", escreveu Rebecca Bruce, historiadora especializada no tema, em um artigo a respeito.
Os barcos a vapor da Thomas Cook subiam o Nilo, deslumbrando os viajantes com uma sucessão de templos antigos e ruínas. Eram roteiros não muito diferentes daqueles recomendados até hoje para quem visita o Egito pela primeira vez.
Mas havia algumas diferenças importantes, e ainda bem. "Nem todas as múmias foram enterradas em túmulos", explica Bruce.
"Algumas foram enterradas em fossos de vários tamanhos. Os turistas podiam visitar esses 'fossos de múmias' e 'descobrir', eles mesmos, uma múmia."
Sim, era o tal "turismo de experiência". Só que na versão sem freios éticos do século 19.

Era uma atividade popular. Os visitantes, inclusive, faziam piqueniques nesses fossos. "Como se perturbar os mortos não fosse nada mais do que um entretenimento da hora do almoço", segundo Bruce.
As múmias, eventualmente, viraram o ponto alto das excursões. Eram o suvenir por excelência, a lembrança definitiva de qualquer viagem ao Egito.
Mesmo ilegal, esse comércio floresceu nas mãos de turistas que queriam levar, pelo menos, um pedacinho das múmias para casa. Pode soar estranho nos dias de hoje (e sem dúvida antiético), mas era moda na época.
Até Napoleão Bonaparte levou a cabeça mumificada de uma mulher para casa e a deu de presente para sua esposa, Josefina. Aula de romantismo.
Como havia múmias acompanhadas de amuletos, joias e outros artefatos funerários, esses itens também entraram no comércio de lembrancinhas de viagem. Na época, o comportamento já despertava críticas.
"Adquirindo o gosto por escaravelhos e estatuetas funerárias, logo começam a comprar com avidez os despojos dos mortos", escreveu a egiptóloga Amelia Edwards em "Mil Milhas Nilo Acima" (1877). "Por fim, esquecem os escrúpulos de outrora e nada mais desejam do que encontrar e se apropriar de uma tumba."
Mas a própria Edwards era adepta da prática. Ela mantinha em seu armário duas cabeças mumificadas.
Além de levar pedacinhos humanos do Egito para casa, muitos desses europeus também deixavam sua marca nos sítios arqueológicos. Era comum, por exemplo, escalar as pirâmides (algo que nos últimos anos vem pipocando nas redes sociais, com algum influenciador fazedor de selfie ressuscitando a prática).
Tourists and their guides clambering up the rock slabs of a pyramid, Egypt, circa late 1800s. [959 X 1200]
byu/ASAmd inHistoryPorn
Outra mania comum da época era deixar as iniciais ou escrever qualquer coisa a fim de atestar sua passagem por aquele lugar. Você podia rabiscar seu nome (ou Carlos Adão, se preferir) em uma ruína de milhares de anos e tudo bem, ninguém ligava.
Não era algo restrito aos turistas mais empolgadinhos. Os próprios arqueólogos daquele tempo deixavam seus rabiscos.
Belzoni, que ficou famoso por ter documentado a tumba de Seti 1º, liberado a entrada do templo de Abu Simbel de toneladas de areia, sido o primeiro a entrar na Pirâmide de Quéfren e ter liderado a missão que removeu o busto de sete toneladas de Ramsés 2º e o transportou para o Reino Unido, deu várias mostras desse vandalismo vitoriano.


No interior da Quéfren, por exemplo, ele fez questão de deixar para a posteridade seu grande feito. Repetiu isso em templos e monumentos.
Não demoraria para que essa farra sobre os mortos começasse a alimentar lendas quase tão famosas quanto as próprias múmias. É dessa época a disseminação das tais "maldições da múmia".
A origem da maldição da múmia
Relacionar múmias a supostas maldições não tem nada a ver com o Egito, mas com a Europa. Isso surgiu no século 19, em um contexto específico.
Uma espécie de culpa moral, ocidental, europeia, branca, cristã começou a criar corpo conforme as explorações no Egito se difundiam. O sensacionalismo da imprensa e a literatura da época alimentavam a inquietação.
Para a egiptóloga Jasmine Day, especializada no tema, a "maldição da múmia" era uma espécie de metáfora dessa culpa colonialista. Diversas histórias começaram a circular, sempre com a moral: "Não devemos mexer com isso".
Uma das múmias do Museu Britânico foi apelidada de Azarada, por causa de seu suposto passado sinistro. Ela teria causado a morte de diversos homens, provocado o início da Primeira Guerra Mundial e afundado o Titanic.
Um belo de um currículo, eu diria. O rumor era tão grande que o egiptólogo Wallis Budge, que trabalhava no museu, precisou escrever um aviso para alertar que tais alegações eram falsas.
Não adiantou muito. Como lembra Bruce, uma famosa revista da época, chamada "Pearson's", tratou do assunto em uma reportagem de capa, em 1909.
Outra lenda envolve uma mão mumificada, que teria sido adquirida por um sir qualquer. Uma versão diz que era Bruce Ingram, um magnata da imprensa britânica, já outra menciona Howard Carter, um aclamado arqueólogo.
Acompanhando o pedaço de cadáver, um bracelete teria o aviso nada sutil: "Maldito seja aquele que mover meu corpo. A ele virão fogo, água e peste." Pois o dono da relíquia não deu bola, só para ver, mais tarde, sua casa pegando fogo.
Ela a reconstruiu, mas depois uma enchente a levou. Só então o sujeito teria se livrado da mão.
Carter, o arqueólogo citado em uma dessas versões, também está ligado à mais famosa lenda do tipo. Afinal, ele entrou para a história por ter descoberto, em 1922, a tumba de Tutancâmon, a mais bem preservada tumba de faraó já encontrada.
Seu patrão, Lorde Carnarvon, morreu inesperadamente apenas cinco meses após ter aberto o mausoléu. No mesmo momento, sua cadela, Susie, teria uivado e caído morta. Atrapalhar o descanso eterno do faraó menino ainda causou um blecaute total no Cairo e teria matado o pobre canário de Carter.
Faltar luz na Cairo dos anos 1920 era tão raro quanto na São Paulo dos anos 2020. Ou seja, foi algo trivial, mas cuja coincidência serviu para alimentar a lenda. A morte de outras oito pessoas conectadas à descoberta da tumba nos 12 anos seguintes também serviu para espalhar a "maldição de Tut".
O destino de Carnarvon foi um acontecimento para a turminha das teorias conspiratórias. Não ajudou em nada o fato de Maria Corelli, uma escritora bastante popular na época, ter divulgado na imprensa inglesa apenas 12 dias antes que ela tinha um livro raro que afirmava que aqueles que invadissem mausoléus lacrados estavam condenados.
Até acadêmicos renomados se mostraram divididos. O orientalista francês Joseph-Charles Mardrus, tradutor de "As Mil e Uma Noites", sugeriu que "forças dinâmicas" mataram o lorde.
Quando uma enlutada lady Carnarvon embarcou no navio que transportava o caixão de seu marido, diversos passageiros cancelaram a viagem, temendo alguma desgraça. É o que conta a jornalista Jo Marchant, autora de um livro sobre a múmia de Tutancâmon.
Turismo controlado
Quanto à "maldição" do turismo predatório, ela começou a ser domada em 1882. Amelia Edwards, consternada com o estrago feito às ruínas, fundou, ao lado do arqueólogo Stuart Poole, o Fundo para a Exploração do Egito (atual Sociedade para a Exploração do Egito).
A organização financia escavações e preserva as ruínas. Além disso, foi importante para firmar a egiptologia como um campo de estudo científico.
Porém, boa parte do estrago estava feito. Nem dá para colocar toda a responsabilidade sobre o comportamento de arqueólogos, exploradores e turistas do século 19.
Essa, afinal, foi apenas uma das várias ameaças que as ruínas egípcias enfrentaram ao longo dos milênios. Só na bagunça que se seguiu à Revolução Egípcia de 2011, estima-se que cerca de US$ 3 bilhões em antiguidades foram saqueados do país.
Mas a fama da 'maldição' persiste. Jasmine Day lembra que Hollywood, desde que adotou a temática, na década de 1930, mantém isso vivo no nosso imaginário. Arqueólogos viraram heróis e as múmias, vilãs, em tramas que ignoravam, em grande parte, o contexto colonialista dessas histórias.
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