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Reportagem

Extremista queimou igrejas e 'ajudou' a salvar tradição em seu país

60º20'N, 5º21'L
Igreja de Madeira de Fantoft
Bergen, Vestland, Noruega

No começo dos anos 1990, o black metal estava intimamente ligado à Noruega. Esse subgênero de heavy metal, marcado pelo som cru, letras de inspiração satânica e músicos chegados a pseudônimos e maquiagens cadavéricas, nasceu na década anterior em outros cantos do mundo.

Para os não familiarizados, a descrição acima pode servir a qualquer tipo de heavy metal. Mas para os fãs as diferenças entre estilos são nítidas, então não venha com o velho papo de "é tudo barulho igual".

Bandas como Mercyful Fate (Dinamarca), Celtic Frost (Suíça), Bathory (Suécia) e, especialmente, Venom (Reino Unido) - sem deixar de mencionar a mineira Sarcófago -, marcaram a primeira onda do black metal. Mas foi na Noruega que o estilo se desenvolveu, deixou as catacumbas do underground e ganhou certa notoriedade.

Infelizmente, boa parte desses não muito desejados holofotes veio pelas páginas policiais, não de cultura. Alguns músicos expressavam o extremismo para muito além de riffs e letras.

Em 1991, Per Ohlin (nome artístico: Dead), vocalista de uma dessas bandas norueguesas, Mayhem, cometeu suicídio. Em sua carta de despedida, ele dizia que não era humano, que toda sua existência não passou de um sonho e que logo ele despertaria.

Oystein Aarseth (nome artístico: Euronymous), guitarrista do Mayhem, disse que a morte do colega foi motivada por um desencanto com a cena black metal de então, que estaria vendida. Euronymous saía por aí criticando o que via como uma geração sem valores.

"O Dead vivia pelo verdadeiro black metal. Quer dizer, roupa preta, cruzes, rebites, spikes e tal. Hoje a molecada usa roupa de skatista, quer ser normal, ama bandas de merda como Napalm Death e Sepultura."

Se a declaração é o velho clichê de uma geração mais velha criticando gostos e escolhas da mais nova, os rumores que corriam sobre os músicos não eram nada banais. Euronymous teria feito um cozido com pedaços do cérebro de Dead e confeccionado um colar com fragmentos do crânio do colega.

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Ele negou que tenha cozinhado os restos mortais.

Sim, foi só isso que ele negou. O colar de pedaços de crânio seria verdade.

As notícias bizarras envolviam membros de outras bandas. Em 1992, Bard Eithun (nome artístico: Faust), baterista do Emperor, esfaqueou um homem até a morte, porque ele o teria assediado sexualmente.

Faust acabaria condenado pelo assassinato dois anos depois. Mas na sua agenda havia espaço para outros crimes.

Já no dia seguinte, Faust e Euronymous se juntaram a outro personagem proeminente da cena, Kristian Vikernes (nome artístico: Varg Vikernes, entre outros). O trio ateou fogo em uma capela de Oslo.

Foi mais um ato de uma sequência que marcou aquele verão. A destruição de igrejas por músicos.

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Dois meses antes, Vikernes teria comandado o incêndio que reduziu a cinzas a igreja de Fantoft. O atentado foi um marco do terrorismo metaleiro.

Que lugar é esse?

Igreja de Fantoft em Bergen
Igreja de Fantoft em Bergen Imagem: Getty Images

A Igreja de Madeira de Fantoft não ficava originalmente na vila de Fantoft, mas em uma outra, Fortun, aos pés do Fiorde de Sogn, o mais longo e profundo fiorde da Noruega. A construção datava do século 12.

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A disseminação do cristianismo na Noruega resultou em mais de mil igrejas feitas inteiramente de madeira, usando técnicas típicas escandinavas. As intrincadas decorações misturavam motivos cristãos com elementos nórdicos, como dragões.

Com o tempo, elas deram lugar a templos maiores e mais resistentes. Tempos de penúria e fé em baixa também levavam a saques e abandono. Madeira, afinal, era algo valioso, que podia ter melhor uso em fazendas do que em igrejas.

Foi o que ocorreu em Fortun. A decadência era tamanha que a pia batismal virou cocho para o gado matar a sede.

No século 19, Fortun ganhou uma nova igreja, e um rico fazendeiro de Fantoft bancou a realocação e a reconstrução do templo de madeira em suas terras. Em 1883, ela chegou ao seu endereço atual.

O incêndio

Igreja de Fantoft em Bergen
Igreja de Fantoft em Bergen Imagem: Getty Images/500px Plus
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Em 6 de junho de 1992, um incêndio a destruiu por completo. De início, a suspeita da causa era um raio ou um curto-circuito. Mas Vikernes acabou incriminado.

Embora ele tenha negado a participação no atentado, a aprovou publicamente. Tanto que acabou usando uma foto das ruínas da igreja para um EP de sua banda, Burzum, lançado em 1993.

EP da banda, Burzum, lançado em 1993
EP da banda, Burzum, lançado em 1993 Imagem: Reprodução

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Vikernes também se envolveu nos incêndios que devastaram duas igrejas em Bergen e uma em Vindafjord, além da capela em Oslo, que já mencionei. Em 1994, ele acabaria condenado por tudo isso e ainda por posse de explosivos e por mais um outro crime, cometido em 1993.

No verão seguinte ao do fogo do black metal, Vikernes e seu colega incendiário Euronymous se estranharam e saíram na mão. A briga terminou com Vikernes metendo uma faca e matando Euronymous.

A coleção de crimes condenou Vikernes a 21 anos de prisão. Era o máximo permitido pela lei norueguesa.

A sequência de atentados foi um baque tão grande para imagem do heavy metal no país que até quem não tinha nada a ver com o som extremo dessas bandas sofreu. Joey Ramone contou à revista "Kerrang!" que os Ramones foram proibidos de tocar no país simplesmente porque um cara pego durante a destruição de uma igreja vestia uma camiseta da banda.

Ou seja, a Noruega não perdeu somente alguns prédios de reconhecida importância histórica e arquitetônica. Perdeu também um show dos Ramones.

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As igrejas de madeira da Noruega

Urnes Stavkirke, a igreja mais antiga da Noruega
Urnes Stavkirke, a igreja mais antiga da Noruega Imagem: Getty Images

Os atentados serviram para chamar a atenção para a maneira como o país enxergava e tratava as igrejas de madeira. Hoje, das mais de mil que se espalhavam pelo território, restam menos de 30.

A de Urnes, uma das maiores e mais antigas do gênero, é patrimônio cultural da Unesco. A de Fantoft, que começou a ser reconstruída logo após o incêndio, ganhou cerca de segurança, além de um novo público - e um novo significado.

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O arqueólogo alemão Cornelius Holtorf fez um provocativo artigo a respeito, publicado em 2017 na "Revista de Arqueologia". Ele argumenta que o episódio trouxe desdobramentos surpreendentes para essa tradição arquitetônica norueguesa.

"Odinista e pagão comprometido, Vikernes defendeu o incêndio da igreja pela necessidade de remover e reverter as profanações cristãs desrespeitosas sobre os locais sagrados pagãos, numa forma de retaliação", escreveu. Holtorf lembra ainda que o atentado reverberou para além da simples perda de patrimônio.

Para os fãs de black metal, o local virou uma espécie de ponto de peregrinação. Para os cristãos, a igreja destruída reacendeu o engajamento religioso, representado pela sua reinauguração (ou inauguração de uma nova versão da velha igreja), em 1997.

Para as autoridades, o evento despertou a necessidade de proteger e restaurar as igrejas restantes. Além de seu valor cultural e religioso, reconhecido pela Unesco, elas tinham um potencial turístico ainda não muito explorado.

"O incêndio que ocasionou a incineração da igreja não levou a um completo desaparecimento do patrimônio, tampouco de seus valores e funções na sociedade, ou mesmo na memória", escreveu Holtorf. "O incêndio pode ser visto como um episódio em um processo contínuo no qual a importância da igreja tem sido negociada e renegociada entre locais, pagãos, cristãos, fãs de black metal e autoridades estatais do patrimônio, todas associadas a diferentes tipos de patrimônio - local e nacional, autorizado e subversivo, religioso e secular, tangível e intangível."

Detalhe da igreja de Fantoft em Bergen
Detalhe da igreja de Fantoft em Bergen Imagem: Getty Images
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Para o arqueólogo, o fato de ter sido vandalizada, incendiada e destruída fez com que a igreja de Fantoft continuasse se desenvolvendo e ganhando novas camadas na memória da sociedade. Holtorf acredita que o extremismo do episódio serve para pensarmos na função dos patrimônios e monumentos.

"O patrimônio cultural é tipicamente compreendido como antigo e frágil, inerentemente valioso, mas ameaçado e em necessidade de cuidado e proteção a fim de ser preservado para o futuro, como um recurso não renovável. Com frequência, há uma preferência por evitar perdas de patrimônio cultural acima de incorporar novos patrimônios culturais mesmo quando eles possam ter (no mínimo) o mesmo valor na sociedade."

É polêmico, é provocador. Mas não se trata de passar pano para o então ícone do black metal. O argumento é o que a igreja significava para aquelas pessoas antes e o que passou a significar depois.

Qualquer possível tentativa de defesa de Vikernes caiu por terra com o que ele fez nos anos seguintes. Ficou complicado explicar que ele teria uma suposta mensagem mais aprofundada ao incendiar uma igreja de mais de cem anos (e com mais de 800 de história).

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É que, na cadeia, o músico fundou uma organização neonazista que defendia uma espécie de neopaganismo germânico. Na prática, era uma forma mais nerd de ser racista até o talo.

Depois, ele lançou livros, discos e acabou ganhando liberdade condicional. Mudou-se para a França com a esposa e os filhos.

Criou um canal no YouTube, que acabou banido por causa de suas afirmações. Nos vídeos, defendia uma sociedade pagã e pré-industrial que deve se opor ao capitalismo, ao socialismo e ao materialismo.

Até aí, é apenas uma visão. Mas nesse balaio odinista de nazismo esotérico entrou um discurso contra o cristianismo, o islamismo e o judaísmo.

Ou seja, não é opinião. É discurso de ódio. É crime. É proibido. É diferente de liberdade de expressão.

Hoje cinquentão, Vikernes ainda comete uma declaração ou outra que gera visualizações em sites de música. Seja dizendo que os millennials são uma geração perdida, seja elogiando Kanye West por usar uma camiseta de sua banda em uma foto.

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A destruição da igreja de Fantoft acabou sendo a "obra" mais significativa de sua carreira. Como músico, Vikernes é um terrorista bem-sucedido que, sem querer, ajudou a fomentar o turismo em seu país.

Hoje, entre os leitores do TripAdvisor, a igreja é a segunda mais popular da Noruega. A história de suas reconstruções, nos anos 1880 e 1990, a tornaram um ponto turístico mais interessante do que outras semelhantes, mesmo que ela não esteja mais na lista dos templos mais antigos do país.

Em nenhum lugar o encontro dessas tradições norueguesas, as igrejas de madeira e o black metal, foi tão dramático, profundo, bizarro ou grotesco. Holtorf, nesse sentido, possivelmente está certo.

Um atentado extremista travestido de intervenção artística pode acabar gerando algo de valor, nem que seja uma placa explicando por que tal prédio foi reconstruído. Patrimônios só valem o significado que damos a eles.

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