Múmias defumadas são atração mórbida e inesquecível de turismo 'espiritual'
7º19'S, 146º14'L
Angapenga
Aseki, Morobe, Papua Nova Guiné
Para nós aqui do outro lado do mundo é meio difícil de perceber, mas existe um país na Oceania que, por mais distante e de difícil acesso que seja, quer receber mais turistas. E está investindo nisso.
Em geral, Papua Nova Guiné aparece mais em documentários de natureza ou sobre povos isolados. No noticiário, é um país be esporádico. Este foi um raro ano em que ele ganhou destaque no Ocidente, com um devastador deslizamento de terra que pode ter matado mais de 2 mil pessoas em maio e a visita do papa Francisco, em setembro.
Por estar fora do radar do turismo tradicional e da geopolítica, esse país ainda é, em geral, um grande mistério no mapa-múndi. Mas não falta interesse nem interessados.
Se você buscar uma região papuana em específico na internet, tudo o que encontrar girará, provavelmente, em torno de um único assunto. Não é um modismo nas redes sociais, mas um interesse que guia os estrangeiros que procuram o lugar há mais de 100 anos.
Quem visita Angapenga, na província de Morobe, quer saber onde estão as múmias defumadas. Um destino possivelmente mórbido, mas também único e inesquecível.
São cadáveres cobertos de argila vermelha, em vários estágios de decomposição, alguns com pedaços de pele e músculos, além de tufos de cabelos e unhas, ainda presos ao corpo. Há fileiras de dentes e expressões em seus rostos, e até uma mulher com uma criança no peito.
Todos expostos em uma encosta, sobre um vale. Exemplificam um tipo de mumificação pouco conhecido, mas que as comunidades locais sabem, há décadas, que interessam não só a antropólogos e outros cientistas como a produtores de conteúdo (com graus variados de sensacionalismo) e a turistas extremos.
Que lugar é esse?
Repleto de florestas tropicais, montanhas e vulcões e com uma riqueza linguística composta por mais de 700 idiomas e dialetos, esse é um país cheio de particularidades. Ocupa o leste da Nova Guiné (segunda maior ilha do mundo, atrás da Groenlândia) e um grande arquipélago e ilhas vizinhas.
Angapenga é uma vila a cerca de 250 quilômetros de Lae, a segunda maior cidade de Papua Nova Guiné. Apesar de remoto, é o lugar de mais fácil acesso para conseguir ver as múmias que fizeram a fama da região.
Uma curta trilha saindo da estrada, seguida de uma penosa subida de meia hora pela selva, roçando em plantas espinhentas e teias de aranha. Em dado momento, o caminho é tão íngreme e fechado que é preciso se contorcer e agachar para continuar subindo.
Então uma parede de barro surge abruptamente. Nela, uma reentrância revela as múmias de Aseki.
"Eram 14 cadáveres, dispostos em andaimes de bambu em posições realistas ou enrolados como fetos dentro de grandes cestos", descreveu o repórter da BBC Ian Lloyd Neubauer ao visitar o local. "Quatro dos corpos tinham se desintegrado em pilhas de ossos, seus crânios espreitando por entre pedaços quebrados de bambu em meio à sujeira."
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Quero receberO que se sabe a respeito delas se baseia em diz-que-me-diz, boataria, lendas, exageros. Mas há espaço para um pouco de história.
Em 1907, na época em que os britânicos estavam passando o controle de Papua Nova Guiné para a Austrália, o explorador Charles Higginson relatou a existência dessas múmias defumadas, diferentes de outros processos de mumificação conhecidos.
Para o povo anga, o ritual era uma maneira de fazer com que aqueles que morreram seguissem próximos, olhando para os vivos, lá embaixo, na vila. Por isso o lugar escolhido para as múmias eram encostas com vista para a aldeia.
Mumificação defumada
O processo dos angas é bem diferente, digamos, do dos antigos egípcios. Primeiro, eles deixam o corpo em posição sentada, próximo ao fogo, por três meses. Essa defumação é essencial para a preservação em um ambiente tropical e úmido. Outra técnica que ajuda a lidar com o ambiente é a camada de argila vermelha aplicada sobre a pele.
À medida que o cadáver incha, eles o cutucam com varas, a fim de drenar os fluidos corporais. Depois, gentilmente alargam o ânus, a fim de usar a gravidade para escoar os órgãos.
É tudo tão visualmente impactante que, se a pessoa estivesse viva, isso poderia ser uma dessas mortes criativas e grotescas da série "The Boys" ou os fatalities de "Mortal Kombat". Mas é um ritual de mumificação, e repleto de significados.
Em nenhum momento os restos podem tocar o chão, inclusive os fluidos. Tudo deve estar suspenso, para evitar mau agouro. Além disso, os mumificadores precisam estar junto do morto o tempo todo do processo.
O rosto deve ser preservado. É uma maneira de manter a imagem da pessoa em uma cultura sem fotografia e uma forma de os espíritos, que circulam livremente durante o dia, reconhecerem seus antigos corpos ao retornarem para eles, à noite.
A mumificação já foi muito mais comum em Papua e nas ilhas do Pacífico Sul. Preservar os corpos dos entes queridos era uma maneira de evitar que eles fossem enterrados e esquecidos, para essas culturas.
A chegada dos missionários cristãos e dos governantes britânicos e australianos no século 20 estigmatizou a prática. Por questões de moral e higiene, ela deveria ser erradicada, defendiam.
Em Aseki, segundo guias locais contaram à BBC, o ritual foi abandonado em 1949, quando os missionários assumiram efetivamente o controle da região. Mas, em 2015, quando um homem chamado Gemtasu morreu, ele teve seu pedido atendido: o corpo foi embalsamado pelos próprios filhos, a quem ele tinha transmitido o conhecimento, pois acreditava ser importante manter a tradição.
Os filhos não aceitaram de cara. Como muitos outros jovens da aldeia, eles abandonaram a ideia de mumificar os mortos, uma tarefa que viam como penosa, demorada e fedorenta. O contato com as cidades portuárias e o maior acesso à globalização enfraqueceram tradições.
Mas, no fim, eles toparam, e o processo foi documentado pela fotógrafa alemã Ulla Lohmann, a pedido do próprio Gemtasu. Sete homens participaram.
Eles cobriram o rosto de argila branca, em sinal de luto. A cerimônia também pedia que eles não bebessem água, apenas caldo de cana. Além disso, só poderiam comer assados preparados no mesmo fogo que preparava o corpo de Gemtasu.
O cadáver inchou, escureceu e endureceu. Os homens cobriram os próprios corpos com os fluidos - e não poderiam tomar banho nem sair do recinto durante todo o processo, que durou três meses.
Foco no turismo
Segundo Matt Cardin, no livro "Mummies Around the World" (inédito no Brasil), as novas gerações não ignoram as múmias. Elas só estão cada vez menos interessadas no significado espiritual e mais na renda que elas podem gerar. "Eles respeitam os velhos costumes, mas veem a necessidade de ganho monetário", explica.
"É notável que, em um ambiente úmido, múmias defumadas possam ser feitas. É um testamento da vontade do povo anga e de sua capacidade de adaptar o ambiente para permitir a preservação do corpo", escreveu.
Eles sabem disso, e sabem que têm uma tradição única, que chama a atenção em qualquer lugar do mundo. Nada mais justo, então, do que cobrar uma entrada dos visitantes. O "turismo de múmias", segundo Cardin, chegou a Papua Nova Guiné.
Em uma feira internacional de turismo realizada em Lae, em 2023, as autoridades locais reconheceram que os altos custos estão minando o potencial da província de Morobe. Falta estrutura, mas não faltam atrações, segundo os expositores. As principais são as trilhas históricas da Segunda Guerra Mundial, que percorrem selvas e montanhas, e as múmias defumadas.
Mas a região está se movimentando. No início deste ano, um renovado e ampliado aeroporto internacional em Lae iniciou as atividades, de olho nos mercados australiano e japonês.
Ver de perto essas múmias vai ficando um pouco menos difícil. Para quem quiser, é claro.
(Um salve ao meu amigo Adriano, que mandou sorrateiramente um vídeo das múmias, pedindo nas entrelinhas que eu escrevesse sobre elas. Tem uma sugestão para a coluna? Mande para mim: @vandeursen)
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