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REPORTAGEM

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Cidade que virou usina de fake news e elegeu Trump segue enganando o mundo

Imagem de "The Book of Veles", de Jonas Bendiksen - Jonas Bendiksen
Imagem de "The Book of Veles", de Jonas Bendiksen Imagem: Jonas Bendiksen

Colunista de Nossa

12/12/2021 04h00

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41º42'N, 21º46'L
Ossuário de Veles
Veles, Veles, Macedônia do Norte

A cidade de Veles, na então Macedônia, ficou conhecida nos Estados Unidos em 2016 por ser um polo irradiador de notícias falsas durante a campanha que elegeu Donald Trump presidente. Jovens desempregados em uma cidade esquecida de um dos países mais pobres da Europa ganhavam uns trocados ao redigir textos mentirosos, feitos sob medida para entrar direto na veia do reacionarismo, do preconceito e da ignorância das redes sociais.

Bem-vindos à Macedônia. Exportadora de produtos alimentícios, bebidas, tabaco e fake news.

Vista aérea de Veles, Macedônia - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Vista aérea de Veles, Macedônia
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Veles foi alçada à condição de lugar estratégico de um dos grandes fenômenos culturais e políticos da década passada (e, pelo andar da carruagem, também desta), a proliferação sistemática de desinformação na internet, algo que futuramente poderá ser visto como o início do ocaso das redes sociais, o "cigarro no avião" dessa geração.

Por causa disso, Veles atraiu uma porção de repórteres, estudiosos e analistas. O fato de ela ficar em um país europeu praticamente esquecido pelo Ocidente, a menos conhecida das ex-repúblicas iugoslavas, deixava tudo ainda mais intrigante.

A cidade de Veles

Memorial ao mortos na Segunda Grande Guerra, em Veles, na Macedônia - Pudelek - Pudelek
Memorial ao mortos na Segunda Grande Guerra, em Veles, na Macedônia
Imagem: Pudelek

Veles tem esse nome em homenagem a um antigo e importante deus eslavo, ligado a colheitas, música, magia, malandragem e dinheiro. Não é um lugar com muitos atrativos turísticos, embora o memorial em homenagem aos guerrilheiros que lutaram contra os nazistas na Segunda Guerra seja um bonito exemplo do modernismo iugoslavo.

Em algum momento do século 20, um oficial russo descobriu um antigo manuscrito conhecido como "Livro de Veles", que trazia inscrições em um alfabeto proto-cirílico que levou anos para ser decodificado.

Uma vez traduzido, o documento revelava uma narrativa épica sobre a origem dos eslavos. Passou a ser até mesmo usado em sala de aula e em palanques políticos. Foi traduzido em outras línguas, virou um importante objeto de estudo.

Tão importante que pesquisadores sérios descobriram que é uma fraude. O texto, composto no século passado, é tão embasado quando um argumento de tiozão do zap. Tem tanta validade científica quanto um kit covid.

Instigado pelo papel da cidade da Macedônia na eleição americana, e inspirado pelo deus eslavo, o fotógrafo norueguês Jonas Bendiksen viajou ao país balcânico para fazer uma reportagem. O resultado foi "O Livro de Veles".

A fileira de prêmios internacionais e a carteirinha de membro da Agência Magnum há mais de década abriram espaço à publicação. Revistas, jornais e sites de tudo que é lugar queriam as fotos e o relato de Bendiksen. Ele negava, humilde, dando uma desculpa qualquer, e se limitava a divulgar o livro em seus próprios canais.

Até que, temendo comprometer sua reputação e a de colegas, ele reconheceu: o seu "Livro de Veles" também era falso. Ou melhor, as fotos são reais, mas todas as pessoas retratadas são criações digitais.

Bendiksen concebeu o livro para ser um mergulho na indústria das fake news usando ferramentas de fake news. Como reconheceu no site da Magnum, ele jamais imaginou que o experimento daria tão "certo".

Uma coisa é o público leigo acreditar nessas fotos como puro fotojornalismo. Outra são os colegas fotógrafos e editores, calejados, olhos treinados, não terem sequer questionado a sua obra. Para Bendiksen, isso só mostrou como a divulgação de notícias falsas é algo cada vez mais bem feito, sofisticado e perigoso.

Uma mentira atrás da outra

O processo de criação de Bendiksen foi primoroso. No YouTube, ele estudou diversos programas de modelagem em 3D e aprendeu técnicas de iluminação e animação. Comprou alguns avatares digitais e os usou de base para criar os habitantes de sua Veles fictícia que aparecem nas fotos.

Quando viajou à cidade, não perdeu tempo fotografando pessoas reais, apenas espaços vazios em parques, apartamentos, escritórios e afins. Com uma câmera equipada com lente de 360º, captou as iluminações específicas que queria.

Voltou para casa e começou a encaixar os personagens nos cenários tentando ser o mais realista possível. Enquanto a pandemia se alastrava pelo mundo, ele passou um ano em frente ao computador, envernizando e retocando camada por camada as suas composições. Foi uma quarentena e tanto.

Bendiksen também se dedicou ao impulsionamento artificial de sua obra. Encontrou um robô gerador de textos e alimentou essa IA com tudo que era artigo e reportagem sobre a indústria de fake news de Veles. Além disso, comprou um perfil falso no Facebook (achou melhor do que criar um do zero porque assim já tinha toda uma rede de seguidores). Os vendedores lhe disseram que as fotos do perfil, uma tal Chloe Miskin, eram todas geradas por IA. O próprio Bendiksen, segundo seu relato, não sabe se é verdade.

Depois, o bot-redator escreveu um ensaio de 5 mil palavras que seria usado no livro para acompanhar as fotografias. Bendiksen não escreveu nada, apenas editou o texto final para ter um fluxo mais bem-acabado.

O fotógrafo tinha agora sua obra. Ela conta uma história real e usa fotos e textos reais de base. Mas as composições são falsas. As pessoas ali retratadas e o que elas falam são um produto digital para gabinete do ódio nenhum botar defeito.

Bendiksen ficou intrigado que nenhum colega levantou dúvidas sobre seu trabalho. Usou Chloe Miskin para se infiltrar nas comunidades online de fotógrafos, estabeleceu contato com umas 600 pessoas, entre editores, curadores e gente da indústria. Tuitou, com o perfil falso, que o livro era uma farsa, só para ver se uma pulga pousava atrás da orelha de alguém mais desconfiado. Nada.

Então decidiu submetê-lo a autoridades no assunto: inscreveu-se em um tradicional concurso de fotojornalismo, o Visa pour l'Image, da França. De novo, nada. Para piorar, os diretores do evento gostaram tanto que o convidaram para exibir "O Livro de Veles" no festival. Bendiksen, apesar do conflito interno e de sentir que talvez já tivesse ultrapassado os limites da ética, aceitou, com o intuito de comprovar seu ponto.

Dias depois, ele esclareceu tudo. "O atrevimento de Jonas Bendiksen, para o bem e para o mal, levou essa questão a um ponto que não julgávamos possível", declarou o diretor do festival, Jean-François Leroy, ao reconhecer que caiu na pegadinha.

Enquanto os entendidos debatem se "O Livro de Veles" é arte ou fotojornalismo, as fábricas de fake news se aprimoram a cada dia, de olho nas próximas eleições, nos nossos bolsos, em nossas convicções.

A Macedônia agora é Macedônia do Norte, após resolver, aparentemente, décadas de desavenças com a vizinha Grécia, onde fica a "outra" Macedônia.

Veles, quando vira notícia internacional, não é mais por notícias falsas, mas por outros problemas, bem reais e atuais. A cidade está na rota do tráfico de pessoas que leva imigrantes e refugiados aos portões dourados da União Europeia.

Nota: este texto foi escrito por um ser humano à base de café, sem uso de robozinhos. Enquanto você lê, estou tomando uma cerveja. Bom domingo.

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