Lei Seca e 'olá, otários': Tan Tan renova drinques com história do álcool

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Entre moonshines e speakeasys, já se ouviu muito a coquetelaria puxar a Lei Seca nos Estados Unidos para vender uma narrativa. Até hoje, foram muitos os drinques para "gângsters de ocasião", com aquele spray de proibição, um toque de contravenção, um vício temático que encanta em filmes (o ótimo "Kansas City" e outros), séries (a incrível "Boardwalk Empire" e mais) e, claro, bares (muitos).
Com o premiado Tan Tan, a "Prohibition" (que "secou" os copos de 1920 a 1933 nos EUA) também dita a nova carta de drinques. Mas os cabeças Caio Carvalhaes e Thiago Bañares, head bartender e chef/dono da casa, respectivamente, conseguiram dar novos ares à inspiração que poderia cair na obviedade.
Nada de beber "sem pensar", mas se não quiser pensar, pode também. Azar o seu — aqui vou falar de tudo e mais um pouco.
"Olá, otários"
Não é mistério, nem novidade que, desde que a gente se conhece por ser humano, buscamos por algo que inebrie ou que altere os status do sentido, começa Caio a explicação e começa a coluna a degustação.
Na pré-proibição, o primeiro contato: paixão, comoção e "uma nação de bêbados", como define o chefe de bar. Até 1920, a profusão de receitas, técnicas e ideias sobre a coquetelaria explodiam nos Estados Unidos.
Coquetéis que remetem à era dourada da coquetelaria, quando o equilíbrio e a sofisticação guiavam as receitas, sem a necessidade de disfarçar imperfeições.

Aqui entram o amargo-doce Elegance (shissô, cachaça branca, vermute tinto, licor de ervas Abadia e Porto Guava da Cia dos Fermentados) e seu ABV 21%, inspirado no clássico Bijou (criação do "pai dos bartenders" Harry Johnson); o não-alcoólico Excess (carqueja, mate, ume, suco de uva branca, vinagre de arroz e rum zero).

Surpreso com esse mocktail aí? Já já te conto.
O favorito da carta está aqui, de cara: o Hello Suckers! (pimenta de cheiro, tomate, tequila, vodca, vermute branco seco, e o chá lapsang souchong). Inspirado no favorito da vida da coluna (Dry Martini), tem 25% de teor alcoólico equilibradíssimo — perigoso, talvez?
Aqui vale contar a história do nome. Era assim que "Hello Suckers!" Texas Guinan, a ex-atriz e dona dos speakeasies mais desbocados da proibição, saudava seus clientes. "Olá, otários", em tradução livre, se tornou sinônimo de lugar ou bebida ousada, como Texas. Musa.

O leão e a elegância
Na segunda etapa, a ideia é lembrar a reação da coquetelaria à Lei Seca, o movimento para tentar regular essa tal sociedade inebriada.
Há um pensamento de que se eu não disponibilizo um produto, talvez eu consiga controlar a sociedade. Mas aí geram outros problemas sociais e mais um, o de arrecadação de impostos.
Sim, o imposto de renda e a Lei Seca têm conexão. Senta que lá vem história, das boas:
Antes de 1913, o governo federal dos EUA dependia, e muito, dos impostos sobre bebidas alcoólicas. A "taxa birita" chegava a representar até 40% da receita federal, segundo o Heinz History Center.
Com a ratificação da 16ª Emenda, porém, o Congresso conseguiu instituir um imposto de renda nacional, reduzindo a prevalência das receitas provenientes do álcool. Com isso, ficou ainda mais fácil os movimentos conservadores conseguirem apoio à proibição do álcool sem comprometer suas finanças.
Com a Grande Depressão em 1929, a queda nas receitas fiscais levou a uma reconsideração da proibição. Os movimentos contra a proibição ganharam força e, posteriormente, a 21ª Emenda revogou a Lei Seca e a grana do álcool passou a ser interessante ao governo americano mais uma vez.
Mas o que isso pode ter feito com a coquetelaria? Muita criatividade para superar os perrengues da clandestinidade, como a falta de produtos, de ingredientes de qualidade e, claro, o alto risco de ir em cana.

A tradução dessa fase na carta "tantanesca" é o zero Hypocrisy (cupuaçu, especiarias e vinagre de arroz); o saboroso Libertine (yuzu, folha de figo, moonshine, vermute branco seco e vermute de jabuticaba), com ABV 16%, inspirado no Scofflaw; e o favorito da coluna, The Last Call (uva Thompson, eau de vie, strega e jerez fino). Inspirado no Last Word, coloca 18% ABV pra jogo e sabor.

Na terceira etapa, inspirada na queda da Lei Seca, a ideia agora é colocar em prática o aprendizado dos últimos períodos: um que o álcool era bacana, mas havia excessos, e outro em que todo mundo rebolou pra esconder o álcool ruim - surgem xaropes, misturas malucas e o intercâmbio dos EUA com a Europa, que Deus-me-livre-proibir-álcool.
"O pós é o momento onde os coquetéis ganham essas duas características das épocas antecedentes", resume Caio.
Aí a explosão de referências é infinita.
O zero Sinner (milho e rum zero) intriga; o Hedonism — 13% — (manga, vodca, jerez fino, awamori, vermute branco seco), inspirado no clássico do Savoy Coronation nº1; e o "Cardinale nipo-tropical" Blame — 15% — (banana, yukari, Campari, vermute branco seco, amaro de catuaba e cachaça envelhecida em amburana).

Sem álcool, com sentido. Sem limão, com Brasil
Quando você só tem uma lista de coquetéis com preço, o cliente vai, compra, paga e vai embora. Quando você tem um conceito, você o convida a entender um pouco do trabalho, da mensagem, ou da provocação, descreve Thiago.
Olhando para os ABV dos drinques zero e dos exemplares da segunda e terceira fase, notou que não há nenhuma bomba de álcool? O olhar para o passado, não sem motivo, tem muito a ver com a fase atual dos drinques: álcool mais baixo, sem perder a intensidade de sabores e com mais e mais experimentações.
(Não que isso tenha influenciado de todo essa colunista, uma vez que o favorito foi o mais alcoólico da carta, na primeira etapa. Muitos dos colegas, jornalistas bebedores, porém caíram de amores pelos zero-álcool. Meu objeto de afeto é abstêmio e democracia é isso aí. Importante é ter opção pra todo mundo que queira beber bonito, beber gostoso).
Porém, ao contrário de muito o que se lê por aí, Thiago e Caio atribuem essa redução alcoólica não somente ao desejo de vida mais saudável, mas também ao bolso do consumidor e, mais especificamente, dos mais jovens.
Tem muito a ver com taxação de álcool, aumento do valor de produtos, e uma geração que não tem dinheiro no momento. Ficou claro que o preço é o maior regulador da vontade das pessoas. Isso também foi um desafio, a gente tentou enxugar o máximo possível pra ter alguns preços que fizessem sentido dentro do mercado hoje, explicam — os zero entre R$ 35 e R$ 45, os outros entre R$ 45 e R$ 75.
Sobre o temor do "álcool morrer", como muito se anuncia, Thiago é categórico: "todo extremo pra mim não é realidade, ele vem para regular".
Não há divisão dos sem álcool na carta, eles estão lado a lado com os outros, alcoólicos. Inteligente em negócio e divulgação, esperta em criação e execução, e, como poucos, inclusiva de fato.

Também chama atenção na segunda fase (Hypocrisy, Libertine, The Last Call) a acidez não ser proveniente do conhecido... limão - somente um yuzu, no segundo. E a presença feliz de produtos brasileiros da Cia dos Fermentados e das destilarias Alba, Geest e San Basile — ainda que Thiago e Caio queiram mesmo é ver um bom rum brasileiro.
Com 10 anos de existência e sucesso, a casa que nasceu como um restaurante "bom e barato" de lámen, hoje mantêm alta a régua dos bons drinques para fazer jus aos prêmios, aos rankings, mas, principalmente, ao público que pede respeito ao momento e às vontades (alto, baixo ou zero álcool), ao bolso e aos pares ao não ignorar que viver de bar é fazer malabarismo financeiro e à inteligência de todos ao colocar um conceito que poderia ser batido, mas surge de forma esperta e mais próxima de qualquer bebedor que vá além do "beber, pagar e ir embora".
*Trilha sugerida para harmonização com essa coluna: "Yeah Man!", Count Basie.
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