'Comida de rico' agita das redes ao vestibular: por que ela gera ódio?

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Um post do ator Chay Suede em 2022 virou assunto da prova do vestibular da Unicamp, uma das melhores universidades do país, no último domingo (26).
A discussão aborda uma foto compartilhada por Suede em seu Instagram que mostrava uma versão de feijoada criada pela chef Helena Rizzo, do Maní, com a legenda "feijoadinha deliciosa".
No prato, no entanto, não estava uma "feijoadinha" tal como conhecemos a receita: era um dos pratos de assinatura da chef (também jurada/apresentadora do Masterchef), que mostra pequenas bolas marrons acompanhadas de um pouco de farofa, algum caldo por baixo e uma pequena quantidade do que parece ser uma couve frita.
No enunciado da questão, a Unicamp usa os comentários de um usuário (ou hater?) para dissecar sobre o prato de "restaurante de luxo" (palavras da prova), em que ele escreve: "se isso é feijoada de rico, eu prefiro morrer pobre".
Entre as alternativas, a correta — segundo o gabarito — era a de letra "d", que afirmava que a polêmica "representa uma prática de distinção social das classes altas em relação às populares", com um "senso estético que valoriza a forma e aquilo que não é necessário, em vez da função".
De rico?
Não ficou claro se "aquilo que não é necessário" é uma opinião da banca ou se era uma tentativa um pouco vaga de interpretar o comentário. Mas a verdade é que o conceito de "comida de rico" ainda provoca muito incômodo.
Ele pode referir-se tanto a pratos com ingredientes luxuosos, como trufas e caviar (quem lembra da canção de Zeca Pagodinho?), quanto a receitas que querem apresentar ingredientes comuns a um nível sofisticado.
Criado em 2009, o prato de Rizzo usa preceitos da chamada cozinha molecular espanhola e apresenta a feijoada de uma maneira incomum: o caldo de feijão surge em esferificações (técnica que "encapsula" líquidos), acompanhadas de outros elementos da feijoada, todos desconstruídos.

Quando Suede publicou a foto, o prato havia voltado ao menu degustação do Maní que prestava homenagem ao movimento do modernismo brasileiro. Claro, o restaurante é caro, onde os pratos variam de R$ 36 (um snack) a R$ 199 (um prato principal que leva carne Angus, com polenta e vagem).
Mas o conceito de "luxo" é bem mais aberto e subjetivo do que o vestibular da Unicamp faz parecer. Quanto à ideia de 'não é necessário', estamos todos de acordo.
Alvo de ódio
A alta cozinha não é uma necessidade — alimentar-se, sim: junto com a respiração, é a mais vital das funções do corpo. Mas são coisas diferentes que sempre trazem um nível de injustificada confusão quando colocados juntos.
Comemos para satisfazer as funções do nosso corpo, claro. Mas não vamos a um restaurante com o mesmo propósito. Reduzir a comida apenas a um nível de necessidade é um erro, não apenas do ponto de vista do "luxo", mas do próprio papel social que a alimentação representa na nossa evolução como espécie.
Muitos são os antropólogos que provaram que foi o convívio em torno do alimento que nos dotou de capacidades primordiais de socialização que ajudaram a definir o modelo de sociedade que temos até hoje.
Mas o assunto aqui é a ideia de luxo, ou "comida de rico". É importante lembrar que a gastronomia não existe para cumprir uma necessidade, mas para aplacar um prazer, um hedonismo.
É o mesmo que acontece em tantas outras áreas: a música, a dança, a moda, o design. Compro uma roupa porque preciso me vestir, mas também a compro porque quero me sentir bonito, bem vestido. Necessidade e prazer não são excludentes, afinal.
Mas poucas outras áreas despertam tanto 'hate' quanto a gastronomia. Um chef divulga seu menu com preço e os comentários que se seguem espumam raiva pelo valor 'injustificado', 'absurdo', 'sem noção'.
Ora, um restaurante ou um chef podem cobrar o quanto quiserem por seus pratos; o cliente, por sua vez, tem o direito de escolher ir ali gastar uma "fortuna" ou ir no outro estabelecimento da esquina comer por um décimo do valor.
É o mundo capitalista em que vivemos: preços diferentes para pessoas (e bolsos) diferentes, que têm acessos e prioridades distintas.
Claro que denota uma "distinção social das classes altas em relação às populares", mas não é só na gastronomia. Uma Ferrari na rua, entretanto, gera mais inveja do que ódio. Qualquer outro símbolo de luxo também.
Com a comida não, porque todos comemos, e por isso alguém escolher (ou poder) comer algo caro costuma soar ainda mais como um ultraje para as pessoas.
Cada um com seu prazer
O consumismo é o fator intrínseco à cultura burguesa que se desenvolveu a partir do século 19. E a natureza dessa necessidade se torna ainda mais clara quando nos voltamos para a forma mais simples e mais direta do consumo: a comida.
Na visão burguesa da comida, ela tem uma importância afetiva e simbólica, um prazer e um status, uma distinção social.
Historicamente, essa distinção estava mais presente no contraste entre abundância (para os ricos) e escassez (para os mais pobres) à mesa. Com a evolução da gastronomia, ironicamente, os pratos pequenos, minimalistas ou com menos comida são os que passaram a ser vistos como "pratos de rico".
É o caso da feijoada de Rizzo, que, ao invés de servir uma "pratada" da nossa mais icônica receita, ousou criar uma versão delicada, desconstruída, esteticamente minimalista da receita, em um "senso estético que valoriza a forma".
O que muita gente não percebe é que o prato da chef é justamente uma tentativa de elevar uma receita popular a um estatuto de alta cozinha. Mostrar que a nossa feijoada corriqueira pode ser servida em um restaurante chique tal como o caviar, sim.

O chef catalão Ferran Adrià, curiosamente o precursor da cozinha molecular, e o inventor da esferificação da feijoada, considera que a gastronomia é o luxo mais acessível do mundo: é mais difícil, dizia ele, conseguir comprar uma Ferrari ou uma bolsa da Chanel do que ir a um restaurante com estrela Michelin — algo que muita gente pode conseguir em vida, pelo menos uma vez.
Não há necessidade alguma de ir a um, claro. Mas essa visita pode oferecer uma dose de prazer que algumas pessoas realmente almejam — e podem pagar.
Talvez o verdadeiro luxo, entretanto, não esteja no prato, mas nessa capacidade, tão democrática quanto a feijoada, de aceitar que o prazer do outro não precisa caber no nosso apetite.





























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