Rafael Tonon

Rafael Tonon

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Metanol e comida que adoece: a conta que estabelecimentos não querem pagar

Dizem que a (boa) hospitalidade começa muito antes do cliente se sentar: como consegue estacionar o carro, o sorriso de quem o recebe, a gentileza com que mostram sua mesa.

Tudo isso importa na sua percepção dos momentos que vai passar ali. É uma responsabilidade dos estabelecimentos certificar que tudo vá bem antes mesmo de alguém comer e beber.

Mas diria que a forma com que o cliente chega em casa, como a comida digere e até de que maneira ele se sente depois de jantar também deveria ser levado mais em conta por bares e restaurantes.

Lembranças de um jantar

Não é quando o cliente passa a porta de saída que sua relação com o restaurante termina. O tempo que dura a memória de curto prazo e principalmente a digestão não pós-refeição vão ser fundamentais para as boas (ou más) lembranças da noite à mesa.

Há alguns anos, estive em Copenhague para comer naquele que foi considerado muitas vezes o melhor restaurante do mundo. Fiz a reserva com meses de antecedência, aluguei uma bicicleta e fui jantar.

O menu da temporada era uma homenagem ao mundo vegetal, mas cheio de experimentos fermentativos. Lembro de uma folha de shiso coberta por um veludo branco, como se fosse a casca de um brie — resultado da inoculação de Penicillium, o fungo usado na produção do queijo. Era quase poético — e, sobretudo, saboroso.

Por estar de bicicleta, preferi não consumir álcool — se pedalar, não beba, principalmente em uma cidade tomada por magrelas. A sommelier então me sugeriu experimentar a harmonização que haviam criado para esses casos.

O que chegou à mesa foi uma sequência de chás, sucos e muitos kombuchas. Mais do que meu corpo estava acostumado. Mais do que a microbiota dos meus intestinos podia absorver.

Continua após a publicidade

O resultado é que, desde o momento que voltei ao hotel até mais ou menos seis horas da tarde do dia seguinte, não consegui sair do banheiro. Aquele jantar ressoou em mim por muito tempo — infelizmente, não da melhor forma.

Imagem
Imagem: stock.adobe.com

Além do metanol

Lembrei desta história esta semana com os casos de intoxicação por metanol em bares pelo país. Penso que há, aí, uma excelente oportunidade de reflexão sobre a responsabilidade (e neste caso, responsabilização) dos bares e restaurantes pelo consumo dos seus clientes.

Claro que em casos que vão parar no hospital ou em óbitos e que representam uma intoxicação real (culposa ou dolosa), não sobram muitas dúvidas do papel dos estabelecimentos na equação.

Um negócio não pode alegar ignorância sobre aquilo que serve (e que compra) assim como não pode ser negligente em relação aos processos que estão intrínsecos à sua atividade, de vender comida e bebida, produtos amplamente perecíveis, que demandam uma segurança alimentar enorme.

Continua após a publicidade

Isso acontece no bar da esquina, mas também em grandes restaurantes, e é muito mais comum do que se pode imaginar. Só neste ano, até agora, não dezenas de casos.

Em abril deste ano, uma mulher precisou ser internada com um quadro grave de gastroenterite após almoçar num restaurante de alto padrão em Belo Horizonte. Segundo os laudos médicos, ela foi infectada pela bactéria Clostridium difficile, provavelmente causada pela ingestão de carne imprópria para consumo.

O caso não é isolado. Em setembro, em Mogi das Cruzes (SP), o número de pessoas intoxicadas num restaurante interditado chegou a 30 — todas com sintomas semelhantes: diarreia, náusea, vômito e gastroenterite infecciosa.

Mas o problema não se restringe a estabelecimentos populares. A alta gastronomia também tropeça. O lendário The Fat Duck, de Heston Blumenthal, já foi temporariamente fechado por suspeitas de intoxicação.

O mesmo aconteceu em 2013 no Noma, em Copenhague, quando 63 dos 78 clientes que passaram por lá numa semana apresentaram sintomas de intoxicação alimentar.

De quem é a responsabilidade

Nem os templos da gastronomia escapam. E é nesse ponto que vale se perguntar: afinal, de quem é a responsabilidade quando o prazer à mesa se transforma em risco à saúde?

Continua após a publicidade

Os restaurantes querem inovar em apresentações e sabores, com receitas cada vez mais criativas, mas muitas vezes derrapam no básico: os processos de controle que garantem a qualidade — e, sobretudo, a segurança — daquilo que servem.

O que consumo num restaurante é tanto responsabilidade minha quanto de quem me serve. Claro, sou eu quem decide a quantidade de kombucha que ingiro num jantar. Mas não seria também papel dos profissionais de sala, que conhecem o menu que criaram, alertar sobre possíveis efeitos colaterais (e até deletérios) ao nosso organismo?

Eu penso que sim. E por isso valorizo cada vez mais cozinheiros e bartenders que explicam como as suas criações foram pensadas também em função do corpo: na digestibilidade, no uso mais controlado do álcool, na ausência daquela sensação de bola no estômago que atrapalha o sono.

Entre espumas e fermentações — entre a ânsia de surpreender e a tentação de economizar usando produtos de pior qualidade —, há quem se esqueça de que o verdadeiro cuidado começa na segurança do que se serve.

E na sensação de se sair do restaurante feliz, com a certeza de que não vou acabar a noite numa maca de hospital. A comida é um gesto de cuidado. Quando esse compromisso falha, não é apenas o estômago que dói — é a própria ideia de hospitalidade que adoece.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.