Rafael Tonon

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Opinião

No reino dos influenciadores de comida, quem ousa ser diferente vira rei

Uma pizza de 3,5 a 4,5 quilos pairava sobre a mesa, sob o olhar desafiador do influencer Ricardo Corbucci.

O desafio? Devorá-la (com dois copos tamanho família de refrigerante) em menos de meia hora para levar US$ 500 (o equivalente a R$ 2.600).

Cronômetro acionado, boné virado para trás e muito apetite: em 25 minutos e 51 segundos, Corbucci não deixou nenhuma migalha.

Com mais de 10 milhões de seguidores, ele se tornou o maior nome dos desafios de comida no Brasil — e um dos principais no mundo. Participa de torneios e competições em que o objetivo é sempre o mesmo: comer muito, e rápido.

Ex-profissional da área de tecnologia, Corbucci hoje vive de produzir vídeos em que devora dezenas de hambúrgueres, baldes de macarrão ou bifes gigantescos. E, ironicamente, os desafios o ajudaram a equilibrar melhor a própria alimentação. O corpo definido é a prova disso.

As competições começaram como uma forma de testar seus limites e ganhar controle sobre a comida (mesmo que em quantidades absurdas). Hoje, são também o motivo de sua fama — acumulando centenas de milhões de visualizações em reels e postagens.

Na era digital, em que há influencers para absolutamente tudo, a comida não fica de fora. Muito além das receitas e dicas de restaurantes, há quem prefira o formato vlog de "o que eu como em um dia" com um recorte particular, como faz Maya Leinenbach no Fit Green Mind, trazendo sua rotina vegana para milhões de seguidores.

Mas além dos formatos já tão replicados, perfis cada vez mais segmentados surgem para mostrar outros ângulos sobre o que comemos — e o que isso diz sobre nós.

Nos Estados Unidos, Andrea Hernández percorre supermercados e empórios em busca dos melhores produtos embalados. Sua plataforma digital, Snaxshot, com newsletter e redes sociais, virou referência para quem acompanha snacks e bebidas.

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Com humor e rigor, Hernández analisa produtos aparentemente banais, mas que, segundo ela, tocam no centro da experiência humana. Afinal, todo mundo consome snacks. Tão especializada, ela virou radar de tendências para a indústria, lida como farol para prever comportamentos de consumo.

Para ela, o que compramos reflete também questões sociais. Produtos com proteína e creatina revelam a obsessão com o corpo, a busca por "luxo acessível" aparece até em marcas lançando itens de supermercado, e a vitória de Trump, segundo Hernández, não deveria ter sido surpresa para quem acompanha de perto esse universo.

Na Espanha, Carlos Álvaro, o "El Catalatas", transformou sua paixão por conservas em fenômeno cultural. Seguido por quase 250 mil pessoas — incluindo Alejandro Sanz e José Andrés —, ele dedica seu perfil a recomendar e colecionar latas.

São mais de 500 exemplares guardados em casa, que ele descreve tanto como provisão para o fim do mundo quanto para um almoço de domingo.

A ideia surgiu em 2015, quando leu sobre sardinhas em lata que melhoram com o tempo, como vinhos envelhecidos. Desde então, passou a colecionar e degustar conservas "maduras", sempre com cuidado: vira as latas a cada seis meses para que o óleo se distribua e nunca vende suas raridades, como uma sardinha da marca Cuca de 1997.

Entre whiskys e conservas, também dá dicas de boas marcas no mercado, como usá-las em receitas, e brinca que sua casa seria o melhor lugar para sobreviver a um apocalipse zumbi.

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Entre os nichos mais inusitados da internet estão aqueles que transformam a comida em espetáculo altamente específico. Há criadores que só provam snacks feitos de insetos (como grilos ou larvas) numa mistura de curiosidade e ativismo ambiental em prol da sustentabilidade.

Outros se dedicam às comidas mais apimentadas do mundo, desafiando-se a engolir pimentas que figuram no Guinness e pratos que fariam qualquer mortal suar só de olhar.

Mas nem todo nicho precisa ser extremo para engajar. Há quem aposte em ciência e teoria, como canais no estilo Food Theory, que exploram curiosidades sobre mascotes, história ou até o jeito 'cientificamente correto' de comer um sanduíche.

E, claro, não faltam influenciadores que organizam experimentos, juntando comidas improváveis ou comparando produtos assinados por outros criadores digitais.

O resultado é sempre o mesmo: fazer de algo cotidiano como comer um conteúdo viciante, capaz de criar tendências e ditar conversas globais sobre comida.

O segredo para transformar um nicho excêntrico em sucesso está na forma como os influenciadores criam conteúdo que viraliza.

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Os desafios de comida, por exemplo, funcionam quase como um reality show digital: basta um vídeo devorando uma pizza de 4 quilos ou enfrentando a pimenta mais ardida do planeta para conquistar milhões de visualizações.

Outros optam pelo viés educacional, mergulhando em teorias, histórias ou curiosidades sobre alimentos. Ao se posicionar como especialistas, conseguem prender a atenção de uma audiência curiosa que busca mais do que entretenimento — quer conhecimento embalado de forma leve e acessível.

Tenho um amigo cozinheiro de um restaurante famoso que resolveu criar um perfil de Instagram só para avaliar a qualidade do delivery em São Paulo. Na conta, batizada de Auditor de Sacola, ele promete "transparência e rigor em cada auditoria", como está escrito na bio.

Usando inteligência artificial, termômetros e outras métricas específicas (que vão do sabor à técnica), ele transforma o que seria apenas uma opinião em algo quase científico: mede textura, sabor e, claro, a performance da embalagem; se ela consegue manter a temperatura e a integridade da comida até chegar à porta do cliente.

A cada pedido, aplica um framework de análise que considera quatro pilares universais — qualidade dos ingredientes, execução técnica, harmonia de sabores e apresentação pós-entrega.

O resultado é uma nota final e um veredito publicado em tom objetivo e transparente ("sem o achismo que impera as redes sociais", diz), que coloca sob lupa desde uma pizza de quatro queijos até um poke bowl.

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Parece específico — e é! —, mas justamente aí está a força. Num mar de vozes padronizadas, que só sabem repetir receitas já muito vistas ou despejar adjetivos superlativos para elogiar (ou destruir) restaurantes, quem tem olho para a diferença (e fome de transformá-la em conteúdo) acaba reinando no mundo dos influenciadores gastronômicos.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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