Não basta alimentar o corpo: 'comida de verdade' é muito mais que nutrição

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Depois de um atraso de quase uma hora no voo (com o avião parado em solo), tive que sair correndo pelos corredores do aeroporto de Munique para garantir a minha conexão. Sem nada no estômago, parei em um desses cafés sem alma que mais parecem uma geladeira gigante com uma infinidade de produtos de todos os formatos e cores.
Meu olho parou em uma garrafa amarelo pastel com os dizeres "THIS IS FOOD" em marrom. Aquilo não parecia comida, não tinha forma de comida, e o plástico grosso me distanciava de qualquer tipo de alimento que eu pudesse reconhecer como tal.
Sem tempo para, de fato, "comer", agarrei a garrafa e enquanto recuperava o fôlego numa daquelas esteiras sem fim, escaneei a embalagem que prometia uma "refeição completa", com "24 vitaminas e minerais", "mais digestiva" e "rica em proteína".
Tinha gosto de milkshake de lanchonete barata e em nada me dava a impressão que eu tinha acabado de comer algo que "garantisse minha saciedade por mais de três horas", como as letras pequenas prometiam.
Era difícil acreditar no que elas diziam, é claro. ?as não o suficiente para se conseguir provar que esses produtos não cumprem em nada com aquilo que prometem. Eu não, mas há quem tenha tentado.
'Comida de verdade'

Um consumidor nos Estados Unidos decidiu processar a empresa Balance of Nature, alegando propaganda enganosa nas embalagens de seus suplementos alimentares, que traziam os dizeres: "Comida de verdade. Ciência de verdade. Nutrição de verdade."
Segundo o autor, essas frases fariam os consumidores acreditarem que os suplementos (feitos com frutas e vegetais liofilizados em pó, encapsulados) são substitutos nutricionais reais para alimentos frescos, e que não havia estudos científicos sólidos comprovando isso.
Nos tribunais, a empresa pediu o arquivamento do processo, e um tribunal federal de Illinois deu parecer positivo — sim, à empresa, não ao consumidor. A decisão judicial entendeu que, por se tratarem de produtos feitos com alimentos de verdade, as expressões podiam ser usadas.
Como os produtos tampouco fazem alegações sobre a quantidade de nutrientes no produto, o tribunal também interpretou que um consumidor razoável não entenderia essas frases como uma promessa concreta de equivalência nutricional com frutas e vegetais in natura.
Ganhou a empresa, perdemos todos nós na inglória luta (muito mais que semântica) de tentar garantir o que é ou não comida em tempos em que há uma crescente tendência de medicalização da alimentação daquilo que comemos.
É mesmo saudável?

De acordo com um novo relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), consumidores de diversos países têm recorrido cada vez mais a suplementos alimentares e alimentos funcionais como parte de uma dieta voltada ao bem-estar e à saúde personalizada.
O documento analisa os riscos associados a esses produtos — como interações com medicamentos, dosagens inadequadas e uso de ingredientes sem histórico de consumo seguro.
A autora, Maura Di Martino, destaca que fatores como a origem, o processamento e a concentração dos ingredientes ativos influenciam na segurança alimentar, sendo essencial que o rótulo seja mais claro e os produtos passem por avaliações rigorosas.
O relatório também examina como diferentes países classificam e regulam esses produtos, com o objetivo de apoiar autoridades sanitárias, sobretudo em nações de baixa e média renda, para fortalecer marcos regulatórios que protejam os consumidores e incentivem a inovação com o mínimo de responsabilidade.
Embora alimentos funcionais e suplementos possam contribuir para a saúde pública, muitas das alegações de benefícios ainda carecem de comprovação científica robusta.
O documento ressalta a importância de fornecer informações seguras e baseadas em evidências aos consumidores, e destaca que o avanço da nutrição personalizada deve vir acompanhado de regulação eficaz e equitativa.
A FAO defende uma abordagem colaborativa e inclusiva para garantir que a segurança alimentar acompanhe o crescimento do setor e não comprometa seus possíveis benefícios à saúde.
Dos astronautas ao fitness

Entender o contexto da criação de fórmulas que simulam alimentos feitos como forma de suplementar ou substituir refeições (sejam em pós ou barrinhas, por exemplo) talvez possa ajudar a entender onde viemos parar.
A primeira a barra energética que se tem registro surgiu no contexto militar dos anos 1930, quando o capitão Paul Logan desenvolveu uma barra de chocolate com alto teor calórico (600 calorias por 100 gramas), resistente ao calor e de difícil mastigação para evitar o consumo rápido — pensada mais como emergência, não como conforto.
A mesma coisa para um consumo mais amplo de leite e sopas em pó, pré-preparados em geral, que depois empresas Nestlé, General Foods e Quaker começaram a produzir para contextos domésticos.
Outro avanço para esta categoria de produtos se deu com a corrida espacial, que impulsionou avanços drásticos em alimentos ultracompactos. Em 1962, o astronauta John Glenn ficou conhecido por consumir um purê de maçã em tubo no espaço.
Da estratosfera para nossa superfície foi um pouso: barras energéticas para uso terrestre, ops, cotidiano também começaram a ser comercializadas em academias, trilhas e como lanches práticos.
A partir dos anos 1980, a era fitness (dos programas de exercícios na TV) popularizou ainda mais os suplementos; foi nesta altura que o hoje onipresente whey protein foi comercializado pela primeira vez.
Daí até os shakes de emagrecimento, que hoje passam para as versões proteicas, capazes de construir músculos mais fortes e protuberantes.
Neste meio tempo, os "tech bros" do Vale do Silício criaram startups para desenvolver os alimentos do futuro, com eficiência, praticidade e rastreabilidade nutricional.
Sempre fortemente associados à vida urbana, ao biohacking e à alimentação personalizada com base em dados, tudo para que pudéssemos consumir alimentos como substitutos completos de refeições, como o Soylent, o Feed, entre outras marcas.
Comer não é só alimentar

O que nos leva de volta a mim na esteira do aeroporto de Munique — ironicamente, um dos melhores em oferta para comer comida de verdade, acompanhadas de cerveja de verdade.
Em uma palestra recente, o antropologista Michel Alcoforado falava dessa tendência recente de acreditarmos que um pó batido pode ser considerado comida. Um pó no copo, batido como um shake no lugar do almoço.
"A gente normalizou o atalho, o suplemento, o substituto — e esqueceu que comer sempre foi mais do que se alimentar", escreve ele. O que define se o pó (antes usado apenas para situações extremas e, depois, para emagrecer) pode ser comida são as tensões culturais de cada momento histórico.
Se calhar, passamos a valorizar mais o efeito que o alimento pode ter no nosso corpo — ganho muscular, eficiência, perda de gordura, foco — do que o sentido cultural e social por trás da comida.
É a cultura que inventa maneiras de comer, diz ele; um jogo que revela o quanto a alimentação está atrelada às transformações culturais, mais do que ciência e saúde — ou, no caso recente, do consumidor americano, até mesmo a justiça.
Mas sigo a insistir que a comida sempre foi mais do que nutrientes. Mais do que função. É memória, afeto, identidade. Uma das coisas mais importantes das nossas vidas.
Pode ser prático, efetivo, nutricionalmente perfeito, mas eu ainda não estou pronto para acreditar que vamos concordar que comida vai ser um shake sabor baunilha que se vende como comida há metros de distância na prateleira refrigerada de um aeroporto.
Para mim, alimentar o que somos vai sempre exigir mais do que uma fórmula, por mais perfeita que ela se proclame.
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