Com 'foodpalooza' e revolução, Copenhague é 'o' lugar para quem ama comer

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Uma tenda de circo é montada em um bairro industrial de Copenhague, onde, por dois dias, reúnem-se alguns dos mais importantes personagens do universo gastronômico.
O cozinheiro-ativista José Andrés, que busca alimentar vítimas de guerras e desastres pelo mundo todo, o chef americano Thomas Keller — o único com dois restaurantes com três estrelas Michelin nos EUA —, quatro garotas adolescentes que representam a nova geração da pesca de salmão na Islândia e uma banda que, no lugar de instrumentos, usa cenouras e repolhos para fazer música.
Assim é o MAD Symposium, o mais importante congresso culinário do mundo, criado pelo influente chef dinamarquês René Redzepi, do famoso restaurante Noma, e apelidado pela Forbes de "o G20 da gastronomia".
Misto de festival — a cada entrada no palco, a plateia de 700 pessoas solta gritinhos histéricos — e sala de aula, é o palco (ainda que tenha mais formato de picadeiro) onde os principais atores do setor discutem o que deverá ser tópico de conversa nos próximos meses ou anos.
São pessoas de 46 países distintos — muitas delas pagaram uma média de 700 euros (cerca de R$ 4.500) para estar ali — reunidas nesse misto de festa e congregação quase religiosa que há sete anos não acontecia.
Por isso, talvez, o grande furor desta sétima edição, que aconteceu esta semana e conseguiu até trazer um restaurante de Los Angeles e outro de Londres, o icônico St. John, especialmente para servir a comida que alimentou as centenas de presentes.
Mas o que mais intriga é: por que foodies, chefs, sommeliers, cientistas, nutrólogos, empresários e muitos entusiastas da gastronomia decidem voar de longe para se concentrar na capital dinamarquesa?
A resposta, entretanto, está muito além do que a tenda vermelha com bandeiras verdes pode abarcar. É um movimento que começou muito antes de o MAD sequer existir — e do qual ele mesmo é uma consequência direta, é preciso dizer.
Nas últimas duas décadas, Copenhague transformou-se em um dos epicentros gastronômicos mais influentes do mundo; um feito surpreendente para uma cidade sem qualquer tradição culinária comparável à de Paris, Roma ou Barcelona, para ficarmos em três exemplos.
Em geral, a comida ali não passava de smorrebrod, arenque defumado e legumes cozidos. Hoje, chefs do mundo todo se espelham nos dinamarqueses para criar seus menus.
Graças a eles, alimentos fermentados se tornaram tão comuns quanto pão e manteiga — até mesmo em países que possuem tudo tão fresco que nem teriam necessidade de fermentar.
No centro dessa transformação está o movimento New Nordic, uma filosofia que defende ingredientes locais, sazonais e sustentáveis, e que moldou não apenas os sabores da região, mas também a mentalidade de toda uma geração de cozinheiros — escandinavos e além.
O manifesto que mudou tudo

Mas houve organização. Há 20 anos, 12 chefs nórdicos assinaram o Manifesto da Nova Cozinha Nórdica, um documento liderado por Claus Meyer e pelo próprio René Redzepi.
Inspirado no movimento da Nova Cozinha Basca (que ocorreu há 50 anos), o manifesto propunha uma culinária ética, pura, fresca e profundamente conectada com as paisagens e estações do Norte da Europa.
O objetivo era claro: construir uma identidade gastronômica própria para os países nórdicos.
A partir daí, uma nova era começou: olhar para os produtos locais, criar uma estética de valorização do natural, refletir valores escandinavos no prato.
Noma: o restaurante que redefiniu a alta gastronomia

Mas não houve restaurante tão fundamental nesse sentido quanto o Noma. Aberto por Redzepi em 2003, tornou-se a principal embaixada do movimento, ganhando por cinco vezes o título de melhor restaurante do mundo.
Redzepi foi além da cozinha: tornou-se um líder de pensamento ao incorporar fermentação, forrageamento e preocupações sociais nos seus menus. Fundou, com a ajuda do governo local, um laboratório de produtos, técnicas e receitas.
Sua abordagem inspirou não só chefs dinamarqueses, mas profissionais de todo o mundo, que passaram a ver Copenhague como uma referência criativa e ética na restauração.
Redzepi virou um ídolo para as novas gerações, seus livros ganharam a cabeceira de futuros chefs — até mesmo em The Bear, um dos personagens quer ir para Copenhague ver o movimento da gastronomia ali, tamanha a fama que a cidade ganhou.
Nos últimos anos, o Noma virou uma marca de produtos para cozinhar em casa, gestou uma série (da qual Redzepi é apresentador, claro), e retomou o MAD, um de seus braços mais bem-sucedidos.
A ascensão de uma geração ousada

Ao lado de Redzepi, chefs como Rasmus Kofoed (do Geranium) e Rasmus Munk (do Alchemist) consolidaram a posição da cidade no cenário internacional.
Kofoed, conhecido pela precisão técnica e menus sazonais meticulosos, foi o primeiro a conquistar três estrelas Michelin para um restaurante na Dinamarca — e o único outro restaurante da Dinamarca (e baseado em Copenhague) a chegar ao topo do mundo, em 2022.
Já Munk, com sua abordagem performativa e provocadora no Alchemist, usa a comida como ferramenta para explorar temas sociais como o plástico nos oceanos, o trabalho infantil e os direitos dos animais.
Com duas estrelas Michelin, o espaço oferece uma experiência multissensorial em cinco atos, combinando alta gastronomia com arte, ciência, música e tecnologia, num ambiente monumental que mais parece um laboratório de teatro culinário.
O chef também é um dos líderes do Spora, um centro de inovação com mil metros quadrados que pretende levar os princípios do Alchemist ao público geral. O espaço conta com cozinhas de pesquisa, laboratórios de microbiologia e um estúdio de som e design 3D de última geração.
Não por acaso, um dia depois do MAD, o chef e sua equipe realizaram ali um pequeno congresso para falar do Futuro da Comida (Future of Food), em que nutricionistas, cientistas e engenheiros de instituições como Oxford e NASA falaram de temas como as novas descobertas da microbiota para a saúde e como vamos cozinhar no espaço.
Um tema que interessa muito a Munk, que, em parceria com empresas de turismo espacial, será o primeiro chef a cozinhar em uma cápsula estratosférica, a 30 mil metros de altitude.
O jantar — restrito a seis milionários dispostos a pagar R$ 2,5 milhões — será inspirado em todas as descobertas da exploração espacial, unindo ciência, inovação e consciência social em uma refeição literalmente fora deste mundo.
De volta a Copenhague, além dos holofotes para restaurantes premiados, a revolução nórdica afetou muito mais que a alta cozinha.
A cidade vive hoje uma cultura alimentar vibrante, onde padarias competem pelo melhor pão de fermentação natural, microcervejarias e vinhos naturais prosperam, e feiras e mercados de rua são palco para refeições acessíveis e criativas.
A gastronomia tornou-se parte da identidade da cidade. Microdestilarias, bares de vinho, cozinheiros de diversas partes do mundo abrindo seus conceitos — coreanos, indianos, latinos.
Copenhague também nunca foi tão internacional à mesa. E o fato de a Dinamarca não ter uma tradição culinária consolidada foi o que abriu espaço para a liberdade criativa e global.
Reconhecimento global
Neste caso, é preciso lembrar que a gastronomia dinamarquesa contou com apoio governamental — do setor agrícola local à produção orgânica, passando por uma bem-estabelecida promoção do turismo gastronômico, claro.
O consumo de ingredientes sazonais e de produtores locais aumentou, e a preocupação ambiental passou a orientar o comportamento à mesa.
Quatro em cada dez turistas internacionais que visitam Copenhague hoje citam a gastronomia como o principal motivo da viagem, um dos maiores indicativos de como a comida virou uma marca local.
Em 2024, a cidade acumulava 26 estrelas Michelin em 15 restaurantes, além de 17 Estrelas Verdes, que se destacam por práticas sustentáveis — mais do que todos os outros países nórdicos juntos.
Além disso, chefs dinamarqueses venceram consecutivamente o Bocuse d'Or, a mais prestigiada competição culinária do mundo, passando de uma cozinha sem muita expressão ao epicentro da cozinha mundial.
Do alto da estratosfera à mesa dos dinamarqueses, Copenhague reafirma seu lugar no centro do mapa gastronômico mundial — e até o espaço, agora, orbita em torno da sua cozinha.
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