Rafael Tonon

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Opinião

O efeito do filme Nonnas: por que somos tão obcecados pela comida da vovó?

É difícil sair ileso de um prato feito por uma avó. A comida traz muito mais do que algo para aplacar a fome — traz junto a infância, a casa antiga, aquele cheiro impregnado na nossa mente que e impossível de esquecer.

E nem falo da nossa avó; falo da ideia coletiva da avó que cozinha com açúcar e com afeto, com "mãos para a cozinha" e com a alma generosa.

Eu não tive essa avó, assim como muita gente talvez não tenha tido esta avó. Mas ainda assim ela vive no nosso imaginário, com o pano de prato estendido no ombro a mexer uma panela com algum molho de tomate capaz de perfumar toda a casa desde que entramos pela porta.

Talvez seja por isso que "Nonnas", que está disponível agora na Netflix, me fez pensar tanto nisso que me pus aqui, a escrever estas linhas sobre comer os deliciosos pratos de uma avó que eu nunca tive — essa que era uma cozinheira talentosa, digo.

Conheço chefs que começaram suas carreiras por verem sua avós colocando seus corações em uma receita para a a família, sei de gente que não trocaria nenhum restaurante estrelado no mundo para estar sentado a mesa da casa de sua avó.

Mas o que há de tão extraordinário nas mãos de uma avó que podem fazer sua comida melhor do que o melhor prato preparado pelo mais talentoso chef do mundo?

Cena de Nonnas
Cena de Nonnas Imagem: Jeong Park/Netflix

O filme nos da algumas pistas; o filme de Stephen Chbosky é uma comédia dramática inspirada na história real do restaurante Enoteca Maria, em Staten Island, onde avós de diferentes origens cozinham pratos tradicionais de seus países.

Na versão fictícia das telas, o protagonista Joe (Vince Vaughn) decide abrir um restaurante em homenagem à sua falecida mãe e recruta um grupo de nonnas italianas para comandar a cozinha.

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A comida — no filme, mas um pouco também na vida real — é o fio condutor da narrativa: serve como ponte entre gerações, símbolo de afeto e ferramenta de reconexão com a memória, a família e a identidade.

Cenas de pratos fartos e debates acalorados sobre receitas tradicionais ocupam boa parte da narrativa — reforçando estereótipos típicos da cozinha ítalo-americana, mas com charme e carisma.

Há algo de profundamente reconfortante na ideia da comida feita por avós — e não apenas pelo sabor. O que chamamos de 'cozinha da vovó' carrega uma estética do afeto: panelas antigas, receitas de cabeça, colheres de pau marcadas pelo tempo.

É uma imagem que mistura ternura e simplicidade, como se ali estivesse a essência de tudo o que é genuíno.

Filmes como "Nonnas", livros de cozinha e ate podcasts mais modernos reforçam esse imaginário: mostram que, mesmo num mundo saturado de novidades, a comida feita com memória continua a ser a que mais nos toca. E uma ideia nostálgica, sim, mas mais atual que nunca.

Não por acaso, tantas pessoas têm se voltado a práticas como fazer caldos, fazer pão de fermentação natural, conservar alimentos ou frequentar feiras — não apenas por saúde ou sustentabilidade, mas pelo desejo de reencontro com algo essencial.

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Essa valorização crescente da cozinha tradicional também representa uma forma tardia — mas necessária — de reparação histórica.

Cena de Nonnas
Cena de Nonnas Imagem: Jeong Park/Netflix

Por muito tempo, o trabalho das mulheres dentro de casa foi subestimado. Mães e avós que cozinhavam diariamente não eram vistas como guardiãs de saberes, mas como "donas de casa".

No entanto, como bem lembram autoras como Samin Nosrat, essas mulheres dominaram, sem diplomas, um saber técnico e sensorial sofisticado: sabiam cozinhar ouvindo os sons da panela, sentindo o cheiro do alho no azeite, testando o ponto dos ingredientes com os dedos.

Ao reconhecer esse conhecimento como legítimo, começa-se a dar à cozinha doméstica o prestígio cultural e simbólico que ela merece — não só como lugar de afeto, mas como território de resistência e identidade, de pertencimento e resiliência.

São práticas que resgatam uma ética do cuidado e da coletividade, num tempo em que comer virou, muitas vezes, um ato solitário ou automatizado.

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Em tempos de ultraprocessados e inteligência artificial, reconectar-se com os ritmos do fogão pode parecer um gesto pequeno — mas é, na verdade, uma forma poderosa de lembrar quem somos, de onde viemos e o que realmente importa à mesa.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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