Josimar Melo

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Opinião

A cozinha italiana é mentira como diz o livro? Fui a Veneza conferir

Embarcando para uma viagem à região do Vêneto, na Itália, a convite de uma associação de promoção da pequena e média indústria (inclusive alimentícia) - a Confapi - não me saía da cabeça o livro "As mentiras da nonna - como o marketing inventou a cozinha italiana".

Seu autor, Alberto Grandi, tenta vender a ideia de que não existe uma cozinha de tradição italiana: para ele, a que conhecemos como tal é nova em folha, inventada há menos de 50 anos - e nos Estados Unidos! Por imigrantes italianos da América que voltaram à sua terra nos anos 1970 com suas invenções americanas - e que nós (o mundo todo), ingênuos, manipulados por ardilosos governantes e marqueteiros italianos, acreditamos ser uma cozinha de raiz local.

O livro foi ignorado na Itália, mas depois descoberto pela imprensa inglesa, que não hesitou em fazer barulho com uma ideia tão divertida (um italiano dizendo que sua cozinha é na verdade ianque) - e aí ganhou o mundo.

Capa do livro 'As mentiras da nonna - como o marketing inventou a cozinha italiana'.
Capa do livro 'As mentiras da nonna - como o marketing inventou a cozinha italiana'. Imagem: Divulgação

A tese desmorona já nas primeiras páginas, quando inadvertidamente o autor enumera pratos tradicionais que aparecem nos "poucos receituários" logo depois da unificação do país (1861): cappelletti à bolonhesa, risoto à milanesa, pizza à napolitana — e um largo etc., presentes um século antes dos ítalo-americanos retornarem nos anos 1970.

(Também não lembro de ter visto na Itália "clássicos" dos imigrantes tipo spaghetti com almôndegas de Nova York, ou bife à parmigiana dos paulistanos.)

O livro não convence, mas é uma colcha de retalhos de informações interessantes. Fala da mitologia, real, criada para vender os produtos e valores do país, mesmo à custa de muita invenção e marketing. E tenta dar-lhe uma longa explicação política, à luz da história da Itália - mas nem precisava: não é um fenômeno exclusivamente italiano. Basta lembrar como os franceses promovem seu vinho (que mudou na época da filoxera, praga que os obrigou a arrancar todos os vinhedos); ou como no Brasil se vende o mito da feijoada criada nas senzalas (e não nas cidades no século 20, como de fato foi).

Grandi também luta para provar que ingredientes como queijo parmigiano-reggiano, presunto cru, aceto balsamico e outros não são o que eram no passado. Com bom humor, mostra como o marketing remete tudo à época dos romanos — mas isso também não é exclusividade dos italianos, nem é necessário (como ele faz) incluir o fantasma de Mussolini: o vinho do Porto (com região demarcada desde o século 16) ou o churrasco argentino também mudaram com o tempo, mas não deixam de ter raízes na história dos países.

Com tudo isso em mente, cheguei à Itália. E a produtos que me desafiavam: seriam a farsa que, a julgar pelo livro, é generalizada no país?

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Saímos pelo Vêneto, começando pela comuna de Treviso, de longa tradição agrícola em suas terras irrigadas pelo rio Piave. Ali a viticultura é um destaque, e ganha certa majestade no Castello di Roncade, o único complexo murado veneziano pré-Palladiano ainda de pé. A propriedade mantém viva a tradição agrícola daquela época, com belos vinhos nascidos no cenário renascentista de sua Villa.

Construído em 1508, hoje o castelo abriga uma vinícola e um hotel.
Construído em 1508, hoje o castelo abriga uma vinícola e um hotel. Imagem: Josimar Melo/UOL

De perfil mais contemporâneo, a Perlage Winery, em Farra di Soligo, é uma das mais importantes vinícolas de espumantes orgânicos do país, colocando-se em defesa da produção sustentável, do meio ambiente e tornando-se uma referência na produção do Prosecco na região demarcada de Valdobbiadene.

Prosecco é uma variedade de uva e também o vinho produzido em Veneto e Friuli-Venezia Giulia.
Prosecco é uma variedade de uva e também o vinho produzido em Veneto e Friuli-Venezia Giulia. Imagem: Josimar Melo/UOL

Na mesma localidade a SuttoWine Col San Martino, da família Sutto, viticultores desde 1933, produz vinhos venezianos e friulanos, tentando representar, com qualidade, o melhor de duas regiões vizinhas.

Mas nem só de vinhos vive a região: o Vêneto é igualmente famoso pela arte da panificação e da confeitaria. Fomos checar esta outra vocação na Fraccaro Spumadoro, em Castelfranco Veneto. Fundada em 1932, a empresa é uma referência na produção de ícones da confeitaria italiana como panetones, pandoros, focaccias doces e colombas pascais. O aroma da fábrica, e a degustação das massas aeradas de longa fermentação, não decepcionam.

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Massas aeradas são mais leves e possuem uma textura mais delicada.
Massas aeradas são mais leves e possuem uma textura mais delicada. Imagem: Josimar Melo/UOL

Ainda na região, foi curiosa a visita ao Birrificio San Gabriel. É uma microcervejaria que embora nascida em 1997, com produção artesanal de pequena escala, inspira-se nas antigas receitas das vizinhas abadias beneditinas, onde monges medievais preparavam bebidas medicinais. Os rótulos de estilos bem variados privilegiam maltes locais.

Finalmente, saindo de Treviso, uma bela surpresa: a Acetaia Ducale Estense, em Quarto d'Altino. É a única na Itália a produzir vinagre com o tradicional sistema passivo solera (com barriletes empilhados), método criado no século 16, a partir de mostos e vinhos de vinha própria e sem aditivos.

Acetaia Ducale produz azeite a partir de método criado no século 16
Acetaia Ducale produz azeite a partir de método criado no século 16 Imagem: Josimar Melo/UOL

Nenhum destes produtores disse que remontam ao império romano... alguns são modernos, outros reclamam tradições. Com ou sem discurso, pelo menos estes (para minha sorte, talvez) têm sua história e exibem qualidade consistente.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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