James Bond corrompeu o martíni ao pedi-lo batido, não mexido (e com vodca)

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Semana passada, no elegante bar Churchill, dentro do magnífico hotel La Mamounia, um pérola marroquina em Marrakech, encostei no balcão para me dedicar a um dos meus passatempos favoritos: pedi um dry martíni.
A reação imediata do bartender foram três perguntas. Gin ou vodca? Batido ou mexido? Azeitonas ou limão?
Detalhe: embora eu tivesse feito meu pedido em francês, e ele tenha respondido no mesmo idioma, ao fazer a segunda pergunta usou as palavras inglesas: shaken or stirred?
Pois é. Não se pode mais pedir uma carne malpassada (como lamentei na coluna da semana passada) sem que muitos restaurantes venham relativizar o significado preciso dos pontos da carne. E não se pode mais pedir um drinque tão clássico como o dry martíni sem correr o risco de enfrentar as mais estranhas versões.
Nada contra que se façam variações, ao gosto do cliente. A receita clássica consagrada nos anais da International Bartenders Association (IBA) preconiza uma proporção de seis partes de gim para uma parte de vermute seco (finalizada opcionalmente com limão ou azeitona).
Ok, se um bebedor tem outras preferências, pode simplesmente pedir ao bartender — por exemplo, mais seco (com menos proporção de vermute). Mas deixemos que o cliente exerça sua mania; senão, esperamos que o coquetel seja feito conforme sua história.

A popularização do personagem James Bond, criado pelo escritor inglês Ian Fleming, foi uma das responsáveis pela perversão do drinque. O agente 007 costumava (e ainda costuma, agora no cinema) pedi-lo com pelo menos duas violentas transgressões às regras da vetusta IBA. Ele bebe o drink com vodca ("vodca martíni", diz ele); e que seja batido na coqueteleira, e não somente misturado (shaken, not stirred).
Beber o martíni com vodca é um contrassenso, senão uma traição naqueles tempos da guerra fria, considerando que o espião a serviço de Sua Majestade (da terra do gim) combatia ferozmente os russos (da terra da vodca); mas há quem diga que promover a bebida do inimigo era apenas uma ironia do autor (haja humor inglês). Já pedir que seja batido, e não mexido, nenhuma teoria explica.
Esclarecendo: na coquetelaria (ops, agora é "mixologia") usa-se a coqueteleira para bater bebidas "imiscíveis entre si", aquelas que não se misturam naturalmente — por exemplo, um destilado com suco de frutas ou clara de ovo. Quando são bebidas que naturalmente se misturam, basta mexê-las com a colher de coquetelaria (a "bailarina") — por exemplo o negroni (gim, vermute, bitter) ou o martíni. Vodca martíni batida não faz sentido.
Anos atrás gravei um programa de TV em Londres no bar do Dukes Hotel, o mesmo onde o autor Ian Fleming bebia seus coqueteis de mau gosto (como o intragável vésper, criado no livro "Casino Royale"). Com as câmeras ligadas, pedi ao impecável bartender, Alessandro Palazzi, que preparasse os coqueteis mais populares no classudo bar — e dá-lhe "vodca martíni", vésper e tal.

Até que... eu lhe disse algo como 'agora chega: vamos passar para um martíni de verdade?'.
Seus olhos de profissional brilharam, como se subitamente estivesse se libertando dos grilhões de um personagem — o alter-ego de Bond e Fleming — que não lhe cabia bem. Ele imediatamente foi buscar seu kit completo. Que incluía gim (tudo — das bebidas aos copos — retirado do freezer, trincando de gelado); e uma colher bailarina, para mexer, não bater.
Fiquei contente — por minha vaidade, e pela felicidade dele — porque Alessandro esqueceu que estava com um microfone de lapela, e que podíamos ouvir sua conversa lá nos bastidores do bar.
Ela incluiu um comentário que dizia a meu respeito:
Este cara é um verdadeiro profissional; não é como aqueles muppets americanos que só querem pedir o que veem nos filmes!"
Foi um martini magistral. Com um toque pessoal, uma nuvem de um bitter, não lembro qual, aspergida sobre a taça.
Mas não posso terminar sem mencionar algo estranho que você, arguto leitor, deve ter já percebido. Poupando sua ira, já me confesso culpado. Falo de outro drinque, entre meus preferidos — a caipirinha —, que enfrenta uma crise de identidade "bondiana".
Pelas regras da coquetelaria, a cachaça (um destilado) e o limão deveriam ser batidos na coqueteleira, para uma mistura perfeita. Shaken, not stirred — como aliás fazem tantos botecos, e tantas barracas de praia (às vezes, na falta de uma coqueteleira, apenas emborcando um copo sobre o outro).
Mas nos bares mais elegantes já não se bate a caipirinha. Até no receituário da IBA, ela deve ser "delicadamente mexida" no copo.





























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