Histórias do Mar

Histórias do Mar

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Após 71 anos, canhão volta ao forte do qual foi tirado e gera polêmica

71 anos e muita polêmica depois, um velho canhão do século 17 será reinstalado no mais importante monumento histórico do município de Cabo Frio, no litoral norte do Rio de Janeiro: o Forte de São Mateus.

E isso virou motivo de comemoração para os historiadores da região e de profunda indignação para um grupo de ex-alunos da principal escola do município vizinho de Nova Friburgo, para onde aquele canhão havia sido levado, mais de sete décadas atrás.

Mas para entender essa história, que alimenta uma polêmica e uma disputa de mais de 30 anos, é preciso voltar no tempo, até lá.

Estripulia de estudantes

Em 1954, um grupo de jovens alunos do colégio Nova Friburgo, então o principal do município do mesmo nome, fez uma excursão à então deserta Praia do Forte, na vizinha cidade de Cabo Frio, e decidiu levar como troféu da viagem um velho canhão de ferro que jazia na areia da praia, após ele ter desabado da então abandonada fortaleza portuguesa, que no passado protegia a Capitania de Cabo Frio de invasores franceses e holandeses, o Forte São Mateus.

Imagem
Imagem: Reprodução

A estripulia fazia parte de uma disputa interna entre turmas da escola, com o objetivo de ver quem conseguia realizar a maior proeza.

E contou com a ajuda e conivência até do professor responsável pela viagem, que ajudou na insana tarefa de remover aquele pesado canhão de ferro semi-soterrado na areia da praia para a caçamba de um caminhão, que levou a peça para o pátio da escola.

71 anos depois, canhão volta ao forte do qual foi tirado e gera polêmica
71 anos depois, canhão volta ao forte do qual foi tirado e gera polêmica Imagem: Reprodução
Continua após a publicidade

Lá, orgulhosos do seu feito, os estudantes comemoraram a façanha como uma demonstração de superioridade sobre as demais turmas e fizeram a "doação simbólica" do canhão para a escola, que não só recebeu a peça de bom grado, sem se importar com o fato de ela ter sido retirada de um local histórico, como ergueu um pedestal diante do principal prédio do colégio para assentar o objeto, rebatizando o local de "Praça do Canhão" - e que virou uma espécie de símbolo da escola.

Imagem
Imagem: Henrique Pinheiro/Reprodução

E assim ficou por mais de 70 anos, para o orgulho dos alunos e professores do Colégio Nova Friburgo, hoje desativado, mas pertencente a Fundação Getúlio Vargas.

Queria o canhão de volta

Imagem
Imagem: Reprodução

Até que, no início da década de 1990, um jovem estudante de história de Cabo Frio, Elísio Gomes Filho, tomou conhecimento daquele fato, de quatro décadas antes, e passou a pressionar tanto a administração da escola quanto as autoridades do patrimônio histórico dos dois municípios para que o canhão fosse devolvido à fortaleza da qual havia sido retirado, àquelas alturas já devidamente restaurada, mas com uma incômoda mácula: a ausência de um dos dez canhões que o Forte São Mateus originalmente possuía - justamente aquele que havia sido levado pelos estudantes da escola da cidade vizinha.

Continua após a publicidade

Começou, então, uma verdadeira cruzada do futuro historiador cabo-friense, hoje com 65 anos, para que o canhão fosse devolvido ao forte, a despeito do pouco caso das outras partes com aquele objeto histórico - que chegou a ser mandado para o Rio de Janeiro, a fim de decorar a sede do Clube Flamengo, já que o seu então presidente, Márcio Braga, havia estudado na escola que herdara o objeto gaiatamente surrupiado por aqueles estudantes.

"Um completo absurdo"

Imagem
Imagem: Reprodução

"Eu achava tudo aquilo um completo absurdo, porque aquele canhão era um objeto histórico e foi retirado do seu contexto, como se saquear monumentos fosse a coisa mais natural do mundo. Jamais me conformei com aquela situação e nunca desisti de brigar pela volta do canhão, apesar do descaso das autoridades e outras partes", diz Elísio, que para conseguir a volta do canhão à fortaleza de Cabo Frio - hoje o principal cartão-postal da cidade - precisou comprar briga com meio mundo.
Especialmente com a Associação de Ex-alunos do colégio que abrigou a peça até dias atrás, cujo atual presidente, o arquiteto e urbanista Luiz Otávio Lins de Souza, considerou, em nota, que a remoção do canhão da sua ex-escola foi um "ato furtivo", e questiona "se a Prefeitura de Cabo Frio possui algum documento do patrimônio histórico que lhe confira a guarda do objeto, que estava abandonado na praia".

Imagem
Imagem: Reprodução

"Levaram até a placa"

Imagem
Imagem: Reprodução
Continua após a publicidade

Segundo Lins de Souza, a associação que ele preside já estava em tratativas com a Prefeitura de Nova Friburgo e a Fundação Getúlio Vargas para que o polêmico canhão fosse "doado para o Exército Brasileiro", quando foi surpreendido com a remoção da peça para Cabo Frio.

"Levaram até a placa comemorativa daquela doação dos estudantes à escola, que nada tinha de histórica. Só ficou o pedestal vazio na praça", lamenta o presidente da associação de ex-alunos - que, diga-se de passagem, não participou daquele ato moralmente condenável, mas perfeitamente aceito numa época em que nem de longe havia o conceito da preservação histórica de hoje em dia.

Duas versões diferentes

"Com a volta do seu décimo canhão, o Forte São Mateus, que foi construído em 1620, com dez 'bocas de fogo', como era chamado esse tipo de armamento na época, voltará a ficar completo. E é mais que justo que isso aconteça", diz a também historiadora cabo-friense Rose Fernandes, que assim como Elísio, participou ativamente da campanha para que o velho canhão retornasse à Cabo Frio - algo que vem sendo interpretado de formas diferentes pelos envolvidos: "resgate", para os historiadores cabo-frienses, e "roubo" para os ex-alunos daquela escola friburguense.

Imagem
Imagem: Reprodução

"O fato é que, finalmente, o canhão está voltando para onde nunca deveria ter saído. Meu sentimento é de dever cumprido", diz o historiador Elísio, principal articulador da volta do canhão ao forte da sua cidade, o que só não aconteceu até agora porque a peça está passando por uma restauração, após tantos anos em outras paragens.

Continua após a publicidade
Imagem
Imagem: Reprodução

Historiador descobriu outro caso

Imagem
Imagem: Reprodução

"A prefeitura deve fazer uma cerimônia quando o canhão for ser recolocado no forte, e para mim será um momento histórico", completa Elísio, que, no passado, também ajudou no esclarecimento e resgate de outros episódios históricos da região de Cabo Frio, como o misterioso desaparecimento de dez humildes pescadores no mar, durante a Segunda Guerra Mundial.

Imagem
Imagem: Reprodução

Seis décadas depois, Elísio conseguiu provar que aqueles pescadores não tinham sido vítimas de um acidente no mar, como foi registrado, e sim sido atacados e mortos por um submarino alemão, em um dos mais inexplicáveis atos da Segunda Guerra Mundial perpetrados no mar brasileiro, como pode ser conferido clicando aqui, ou assistindo a um vídeo recém-lançado sobre o revoltante caso do barco Changri-lá.

Continua após a publicidade

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.