Histórias do Mar

Histórias do Mar

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Como navio encalhado em ilha quase extinguiu o inseto mais raro do mundo

Na noite de 15 de junho de 1918, o navio a vapor SS Makambo, que ia da Austrália para as ilhas da Melanésia com uma combinação de carga e passageiros, encalhou a poucos metros da então selvagem Ilha Lord Howe, no mar da Tasmânia.

Imagem
Imagem: Samuel J. Hood Studio Collection

Apesar das dimensões do acidente, apenas uma das passageiras, uma mulher já idosa, morreu, ao cair do bote, já perto da praia.

Com exceção dela, todos os ocupantes do navio sobreviveram, inclusive alguns seres que mais tarde seriam responsáveis pela verdadeira tragédia do encalhe do SS Makambo: os ratos.

Ao fugirem da inundação do navio, os roedores também buscaram abrigo na ilha, que não tinha animais daquela espécie - apenas aves, alguns tipos de lagartos e muitos insetos, um deles endêmico: o inseto-pau da Ilha Lord Howe, também conhecido como "lagosta de árvores", pelo seu formato e carapaça, que só existia ali.

Imagem
Imagem: Granitethighs

E foi justamente esse o problema. Sem predadores naturais, já que a natureza não previra a existência de ratos naquela ilha, os roedores sobreviventes do SS Makambo encontraram em Lord Howe o ambiente perfeito para proliferar descontroladamente e aniquilar a fauna local, rapidamente transformada em comida.

Ratos dizimaram a espécie

Os ratos começaram invadindo os ninhos das aves e devorando ovos e filhotes. Depois, atacaram os lagartos. Por fim, dizimaram a população local (a única do planeta, por sinal) dos peculiares insetos-pau, que eram lentos, não voavam, não se escondiam nem se defendiam dos ataques dos roedores, porque desconheciam o risco que aquele predador representava, já que não continham essa informação nos seus genes.

Continua após a publicidade

O resultado foi avassalador: em pouco tempo (e após uma desastrada tentativa humana de aniquilar os ratos introduzindo na ilha outra espécie não nativa para caçá-los, as corujas da Tasmânia, o que só agravou o problema porque introduziu outro predador no ecossistema local), não restava um único inseto-pau na Ilha Lord Howe. E como ele só existia ali, foi dado como extinto.

Só que não.

Só 24 sobreviventes

Quase meio século depois, um grupo de alpinistas que participava de uma escalada exploratória em um proeminente rochedo no meio do mar, próximo à Ilha Lord Howe - chamado Pirâmide de Ball, pelo seu formato curioso - relatou ter encontrado alguns insetos-pau mortos na única área de vegetação do inóspito ilhéu, um solitário arbusto espetado na rocha nua.

Imagem
Imagem: Getty Images

Intrigados com aquele relato, alguns pesquisadores foram até a tal Pirâmide e não só encontraram outras carapaças de insetos-pau mortos (felizmente, sem nenhum sinal de que tivessem sido vítimas dos implacáveis ratos da Ilha Lord Howe) como, também, 24 indivíduos vivos, todos abrigados em uma única cavidade do tronco do tal arbusto solitário, como um improvável refúgio de vida, para a manutenção da espécie.

Continua após a publicidade

Isso fez com que aqueles exemplares dos insetos-pau da Pirâmide de Ball (que nunca ninguém soube como foram parar ali, a mais de 20 quilômetros de mar da Ilha Lord Howe) passassem a ser chamados de "insetos mais raros do mundo", já que só existiam eles no mundo.

Mas foi aquele achado que permitiu a preservação da espécie, também só possível graças a outra característica dos insetos-pau, além do seu tamanho avantajado (alguns indivíduos beiram os 15 centímetros de comprimento, feito grilos gigantes): a partenogênese, ou capacidade que suas fêmeas têm de procriarem sem a ajuda de machos.

Adão e Eva

Imagem
Imagem: Getty Images

Dois exemplares da espécie - um macho e uma fêmea, sintomaticamente batizados de "Adão e Eva" - foram levados o centro de pesquisas biológicas do zoológico de Melbourne, na Austrália, e ali procriaram em cativeiro, garantindo assim a preservação da espécie.

Atualmente, estima-se que cerca de 1 000 exemplares de insetos-pau da Ilha Lord Howe habitem alguns zoológicos do mundo, embora ainda não tenham sido reintroduzidos na ilha que os batizou.

Continua após a publicidade

Mas isso está nos planos.

Ratos finalmente exterminados

Seis anos atrás, os ratos descendentes daqueles primeiros roedores sobreviventes do SS Makambo foram finalmente dados como exterminados na Ilha Lord Howe, após um bem-sucedido programa de desratização, abrindo caminho para a volta dos insetos-pau e do equilíbrio ambiental na ilha, após a retirada também das corujas, o que está em curso.

Só quando isso acontecer é que as lagostas de árvores da Ilha Lord Howe sairão da incômoda posição de "insetos mais raros do mundo", que ocupam desde que foram dizimadas pelos ratos do SS Makambo. Mas continuam seriamente ameaçados de extinção na natureza.

E tudo isso por conta da interferência humana, como quase sempre acontece .

Outro caso, ao contrário

Apesar da tragédia ambiental que o encalhe do SS Makambo causou na Ilha Lord Howe, 107 anos atrás, não foi a primeira vez que um acidente marítimo alterou o equilíbrio de uma ilha, ao introduzir espécies animais não nativas.

Continua após a publicidade

Mas, felizmente, nem todas as ocorrências desse tipo foram prejudiciais ou daninhas ao meio ambiente.

Ao contrário, em alguns casos as introduções involuntárias de outras espécias em ilhas causadas por naufrágios chegaram a ser positivas.

Como aconteceu na ilha americana Gardiner, quase vizinha à Nova York, uma das propriedades mais exclusiva dos Estados Unidos, que pertence a mesma família há mais de quatro séculos, e onde ninguém entra.

Ali, em 1812, uma escuna afundou, deixando como sobrevivente uma gata da raça maltese, originária da distante ilha de Malta, que passou a procriar com outros gatos da propriedade.

O resultador foi o surgimento de uma sub-espécie felina, que até hoje, por conta do acesso fechado à ilha, só existe ali - clique aqui para ler esta interessante história.

Ao contrário do que aconteceu naquela selvagem ilha do Mar da Tasmânia, mais de um século atrás, na elegante ilha americana a chegada acidental pelo mar de um animal invasor foi benéfica para a ilha.

Continua após a publicidade

Até porque tratava-se de um linda gata, e não um bando de ratos.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.