Histórias do Mar

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Reportagem

Sobrevivente de naufrágio que pôs o Brasil na guerra ainda chora ao lembrar

A alagoana Walderez Cavalcante tinha apenas 3 anos de idade quando embarcou com seu pai no vapor brasileiro Itagiba, no qual ele trabalhava como marinheiro, para uma viagem do Rio de Janeiro para Maceió.

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Imagem: Reprodução

Às 13 horas em ponto do dia 13 de agosto de 1942, o navio deixou o armazém número 13 do porto carioca para uma viagem que - coincidência ou não, pela incidência do malfadado número - acabaria marcada pela tragédia, já que estava em curso a Segunda Guerra Mundial, embora o Brasil ainda não tivesse aderido ao conflito.

Quatro dias depois, quando o Itagiba navegava na altura de Morro de São Paulo, no litoral da Bahia, com 181 pessoas a bordo, entre tripulantes e passageiros, ele foi avistado pelo periscópio do submarino alemão U- 507, cujo capitão, o alemão Harro Schacht, a exemplo do que já havia feito com outros três navios brasileiros nos dias anteriores, deu ordem de abrir fogo.

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Imagem: Reprodução

O torpedo atingiu em cheio o casco do vapor, que estremeceu feito um brinquedo e instantaneamente começou a ser inundado pela água.

Brincava quando o torpedo explodiu

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Imagem: Arquivo pessoal

Quando isso aconteceu, a pequena Walderez brincava no convés, longe do pai, que desempenhava suas funções no interior do navio, e não entendeu nada do que estava acontecendo. Ela só via as pessoas correndo atônitas, de um lado para outro.

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Um par de minutos depois, ela foi agarrada pelo pai, que veio em disparada ao seu encontro, e levada para um pequeno barco, que estava sendo baixado ao mar.

Parecia um final feliz, mas...

Tudo parecia caminhar para um final feliz, quando, de repente, um dos mastros do navio desabou sobre o pequeno barco, arremessando todos na água, e ferindo o pai de Walderez, que teve a bacia fraturada e foi arrastado para o fundo do mar pelos fios do telégrafo atados ao mastro.

Ele não conseguiu se manter agarrado à filha, mas ela foi socorrida por outro marinheiro, que tratou de segurar a criança e colocá-la sobre algo que flutuasse.

Foi quando ele viu, boiando no mar, um caixote de madeira, que originalmente transportava latas de leite condensado no porão do navio. Ele, então, colocou a criança dentro do caixote e o empurrou para longe, para que não fosse sugado pelo empuxo da água, quando o navio afundasse por completo, o que aconteceu em seguida.

Salva, mas traumatizada

E foi assim, dentro de uma tosca caixa de madeira e sozinha, que a pequena Walderez foi lançada ao mar, à deriva, em meio a uma confusão dos infernos.

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Só seis horas depois, quando a perplexidade inicial da criança deu lugar ao choro e ao medo, é que ela foi resgatada pelos tripulantes da escuna Aragipe, primeiro barco a chegar ao local da tragédia.

A pequena Walderez estava salva.

Mas chorava, de susto, medo e pela falta do pai - que, àquelas alturas, após se desvencilhar dos fios aos quais estava enroscado debaixo d´água e ser socorrido por companheiros, ameaçava se suicidar, caso não encontrasse a filha no mar.

O segundo "milagre"

Walderez foi levada para terra firme pela escuna (que, por sinal, só não foi posta também a pique pelo mesmo submarino que afundou o Itagiba porque o comandante Schacht julgou que não valia a pena gastar um torpedo com um barco tão pequeno), e abrigada na casa do prefeito da cidade de Valença.

Ela estava bem, embora um tanto assustada. Mas, ao entrar na casa, caiu da escada e quebrou um dos braços.

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Imediatamente, foi levada para o hospital da cidade. E foi lá que o segundo milagre aconteceu na sua vida.

Ao entrar no pronto-socorro, a menina deu de cara com o pai, que fora levado também para lá, por causa da fratura que havia sofrido - e que, até então, desesperado pela perda da filha, só pensava em se matar.

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Imagem: Arquivo pessoal

Símbolo da crueldade nazista

Aquele improvável reencontro foi o momento mais emocionante da tragédia do Itagiba. Mas não o único.

No dia seguinte ao naufrágio, a foto da "pequena náufraga do caixote", sentada na cama de um hospital e fazendo o "V" da "vitória" com os dedinhos do braço não engessado, foi estampada na primeira página do Diário da Bahia, e serviu para torná-la momentaneamente mais famosa até do que a principal estrela brasileira da época, Carmen Miranda.

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E a imagem daquela inocente garotinha dentro de um caixote à deriva no mar se tornaria uma espécie de símbolo da crueldade nazista, que serviu para impulsionar ainda mais a entrada do Brasil na guerra, o que aconteceria apenas cinco dias depois.

Não gosta de lembrar

Hoje, porém, aos 86 anos, sofrendo as consequências naturais da idade avançada, a psicóloga aposentada Walderez Cavalcante não gosta de lembrar do dia em que ficou famosa.

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Imagem: Reprodução/ Ailton Cruz/ Gazeta de Alagoas

"Foi um capítulo da minha vida que prefiro não recordar", diz Walderez, que ainda vive na capital de Alagoas, hoje mãe de três filhas, avó de cinco netos e já com um bisneto - e que, recentemente, foi homenageada com uma visita do capitão dos portos de Alagoas, Rodrigo Garcia.

"Só lembro da fumaça preta saindo da chaminé do navio enquanto ele afundava, e que eu chorava. Na verdade, ainda choro sempre que lembro daquela cena, porque morreu muita gente naquele dia", diz Walderez, recordando aquela trágica manhã de mais de oito décadas atrás.

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Família não sabia

No naufrágio do Itagiba morreram 36 pessoas, entre marinheiros e passageiros, sendo que algumas delas não propriamente no afundamento do navio, mas quando já haviam sido resgatadas e estavam a bordo do vapor Arará, que também veio socorrer as vítimas do ataque do submarino alemão, mas que acabou também sendo torpedeado por ele em seguida.

"Fiquei traumatizada", diz Walderez, que durante muitos anos escondeu a sua história das próprias filhas".

"Só ficamos sabendo quando já éramos adultas", diz uma delas, a enfermeira Karine, que sempre estranhara o fato de seu avô (o pai de Walderez) andar com um canivete preso ao cinto da calça.

"Só entendi a razão daquilo quando minha mãe contou a sua história e explicou que aquele canivete foi o que o meu avô usou para cortar os fios do telégrafo, que quase o fizeram morrer afogado no naufrágio do navio. Para ele, virou uma espécie de amuleto", diz Karine.

Última testemunha

O pai de Walderez morreu em 1991, aos 87 anos de idade, mas agradecido a Deus por não ter perdido a filha naquele dia.

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Já Walderez segue viva, como a última sobrevivente do naufrágio do Itagiba, e única testemunha ocular da sequência de infames ataques que o submarino alemão U-507 perpetrou na costa do Nordeste naquele mês de agosto de 1942 (que ficaria conhecido como "Agosto Negro"), quando, em apenas quatro dias, seis embarcações brasileiras foram torpedeadas e 605 pessoas perderam a vida, como pode ser conferido clicando aqui.

"Eu preferiria não lembrar de nada daquele dia", diz Walderez, 82 anos depois.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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