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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Funeral no mar: o que acontece com as cinzas dos mortos jogadas na água

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Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

30/07/2022 04h00

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Com a popularização das cremações, os funerais no mar, cerimônias nas quais as cinzas de corpos cremados são lançadas na água, em vez de serem guardadas em urnas ou pulverizadas na natureza, estão também se tornando cada vez mais frequentes — apesar das muitas restrições religiosas a esta prática.

A ideia de que, ao serem lançadas ao mar, as cinzas de um ente querido irão se dissolver na água e flutuar, ao sabor das correntezas, até algum paraíso distante, onde todos gostariam de estar, traz certo reconforto aos familiares, especialmente se o falecido tivesse apreço pelo ambiente marinho.

"Mas, na prática, não é bem assim que acontece" Horst Hahn

Não são cinzas. São grãos

Segundo o alemão Horst Hahn, de 89 anos, pioneiro nesse tipo de funeral na Alemanha, ao serem lançados no mar, os restos de um corpo cremado afundam rapidamente e ali permanecem, porque, ao contrário do que parece, "não são exatamente cinzas e, sim, grãos, bem mais pesados que a água".

Capitão Horst Hahn, precursor dos enterros no mar - dpa/picture alliance via Getty Images - dpa/picture alliance via Getty Images
Imagem: dpa/picture alliance via Getty Images

No processo de cremação, o corpo humano se transforma em um montinho de grãos, feito uma areia grossa, por causa dos ossos, que são triturados. Não são cinzas leves como o ar, que dissolvem totalmente na água", explica o especialista.

Vão para o fundo

"Uma vez cremado, o corpo humano vira uma espécie de cal, que desce rapidamente para o fundo e ali fica. Com o tempo, vai sendo coberto pela areia e vegetação marinha, mas isso está longe de ser ruim", diz Hahn, um ex-capitão de navios que herdou da família uma funerária, e, por sua afinidade com a água, sempre foi 100% favorável aos "enterros" no mar.

"Também a crença de que as cinzas serão engolidas pelos peixes não se justifica, porque os seres marinhos evitam o calcário", acrescenta o alemão, que sempre foi totalmente avesso aos cemitérios e às empresas que os operam.

Aversão por cemitérios

"Nos cemitérios, você precisa pagar por aquele pedaço de terra e, mesmo assim, depois, seus restos são retirados. Já, no mar, isso não acontece: você fica lá por toda a eternidade", diz o alemão, que, desde que se aposentou da profissão de comandante de navios, organiza funerais no mar, a bordo de seu barco, sugestivamente batizado de "Farewell" ("Despedida", em inglês).

Nas cerimônias, Hahn segue a velha tradição marítima dos sepultamentos no mar: toca o sino do barco oito vezes e circunda o local, em homenagem ao morto.

Jogando flores no mar - Getty Images/EyeEm - Getty Images/EyeEm
Imagem: Getty Images/EyeEm

Pétalas de flores também são jogadas na água, mas buquês e ramalhetes não, porque são considerados um tipo de poluição do mar.

"Continuação da vida"

Antigamente, apenas corpos de marinheiros mortos no mar eram "sepultados" na água — sem sequer cremação.

Em certos países, funerais no mar de civis eram até proibidos.

Mas isso começou a mudar na medida em que as famílias - muitas vezes, seguindo os próprios desejos dos falecidos - passaram a requisitar esse tipo de serviço às empresas funerárias.

Hoje, tanto as cremações quanto os "enterros" no mar ainda são minorias nas atividades funerárias no mundo, mas ambas vêm crescendo rapidamente, empurradas pela economia de dinheiro que isso representa para as famílias, da carência de espaços nos cemitérios e pelo simbolismo da "continuação da vida" em um meio vivo, como é o mar.

É proibido ou não?

A maioria dos países, como o próprio Brasil, ainda não tem uma legislação específica sobre o depósito de cinzas humanas no mar, mas exigem que alguns cuidados sejam tomados, a fim de não causar danos à saúde pública e ao meio-ambiente — como não depositar as cinzas junto às praias, e sim no mar aberto, e usar apenas urnas funerárias biodegradáveis, que se dissolvem na água.

Estes cuidados são seguidos por todas as empresas que oferecem esse tipo de serviço, que já não são poucas por aqui também - uma delas, no Rio de Janeiro, atende pelo gaiato nome de "Fantasma Boat", mas apenas aluga barcos para as cerimônias.

Aproveitando esta lacuna na legislação, alguns municípios, como Blumenau, em Santa Catarina, criaram regras próprias para as cinzas de cremações e passaram a determinar que "urnas funerárias contendo cinzas sejam guardadas em locais apropriados, como cemitérios".

E esta também é a determinação da Igreja Católica e da maioria das outras religiões.

O judaísmo proíbe

Com exceção do hinduísmo, no qual a cremação é prática habitual e as cinzas dos mortos são espargidas nos rios - de preferência, o Ganges, Rio Sagrado doi hinduístas, onde as pessoas tomam banho bem ao lado das cerimônias de incineração dos corpos -, praticamente todas as demais relevantes religiões do planeta têm restrições ao lançamento de restos humanos no mar.

A igreja anglicana até permite isso, mas "apenas em áreas específicas de mar, determinadas por algumas igrejas".

Já os budistas também cremam seus mortos, mas muito raramente depositam as cinzas na água, preferindo os túmulos ou columbários.

O judaísmo, por sua vez, proíbe terminantemente as duas práticas - tanto a cremação, quanto o depósito de restos humanos no mar -, porque só considera um corpo como sepultado quando ele está, literalmente, coberto de terra.

O que diz a Igreja Católica?

No passado, as igrejas católicas, evangélicas e luteranas condenavam até as cremações, porque consideravam a incineração de cadáveres uma espécie de rejeição da fé na vida eterna.

No caso da Igreja Católica, isso mudou com o Código de Direito Canônico, que passou a aceitar as cremações (embora sugerindo que se "conservasse o piedoso costume de sepultar os mortos"), mas não a dispersão das cinzas na natureza, tanto em terra quanto no mar, práticas que continuaram sendo consideradas "incoerentes com a fé cristã".

Urna funerária - Getty Images - Getty Images
Imagem: Getty Images

Segundo a Igreja Católica, as cinzas dos corpos cremados devem ser guardadas em urnas específicas, em "local apropriado e sagrado", como os próprios cemitérios, porque "os mortos merecem dignidade".

Guardar em casa também não pode

Até mesmo a conservação de cinzas em casas de familiares é condenada pela Igreja Católica, que também só admite o sepultamento no mar em casos onde a morte tenha ocorrido no próprio mar, e não seja possível levar o corpo para terra firme - mesma posição adotada pelo islamismo.

E a questão ambiental?

Para muitas pessoas, jogar cinzas de corpos humanos no mar, além de gerar riscos à saúde dos outros, agride o meio ambiente.

Mas os especialistas garantem que, tomados os cuidados básicos (distâncias das praias e uso de urnas biodegradáveis), o risco de poluição não existe, porque as cinzas não são poluentes e o ambiente marinho absorve os resíduos em pouquíssimo tempo.

Mas é preciso bom senso também na escolha do invólucro adequado que conterá as cinzas, porque, eventualmente, ele também pode acabar dentro d´água.

Virou caso de Polícia

Garrafa com dinheiro - Waltonso.org - Waltonso.org
Imagem: Waltonso.org

Foi o que faltou à americana Darlene Mullins, quando decidiu depositar as cinzas do seu filho Brian no mar, três anos atrás.

Em vez de espalhar as cinzas na água, ela decidiu colocá-las em uma garrafa fechada, para que os restos do seu filho "seguissem viagem", mar afora.

Mas a garrafa foi dar em uma praia da Flórida apenas dias depois, e seu insólito conteúdo chamou a atenção da Polícia, que, no entanto, decidiu ajudar a pobre mãe na empreitada — clique aqui para conhecer esta interessante história.

Apesar da originalidade daquele funeral idealizado pela americana, os especialistas recomendam que o ideal é apenas seguir a simplicidade do ato, na hora de transformar o mar na última morada de que partiu desse mundo, mas segue vivo na memória dos que ficaram.

Nada representa mais a vida do que o mar", resume o especialista alemão Horst Hahn, que há várias décadas se dedica a sepultar pessoas na água.