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Histórias do Mar

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

A insana saga de um casal que decidiu cruzar o Atlântico com um carro-barco

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

04/06/2022 04h00

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O ano era 1946, logo após o final da Segunda Guerra Mundial.

O australiano Frederick Benjamin Carlin, que todos chamavam de Ben Carlin, um engenheiro que trabalhara em bases militares na Índia durante o conflito, visitava um ex-campo do exército americano quando viu, jogado num canto, uma espécie de barco, que lembrava uma balsa, mas, estranhamente, tinha rodas. E, também, volante, faróis e para-brisa.

Parecia um jipe.

E era um jipe!

Histórias do Mar :: Carro-Barco : - Reprodução - Reprodução
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Um Jeep anfíbio — a resposta americana ao Volkswagen híbrido, que os alemães haviam criado durante a guerra.

Ou seja, um veículo capaz de funcionar tanto na terra quanto na água.

Ele queria vencer o mar

Foi paixão à primeira vista.

E Carlin não sossegou mais enquanto não conseguiu comprar um daqueles estranhos carros-barcos, que, no entanto, haviam sido feitos para cruzar apenas rios e lagoas, não o mar, como ele pretendia fazer.

Pior que isso: o que Carlin queria era atravessar o oceano Atlântico com um daqueles esquisitos veículos híbridos — algo impensável e totalmente improvável de dar certo.

Ideia absurda demais

Mas o australiano era teimoso demais para desistir diante da simples afirmação de que aquele veículo não poderia ser usado no mar.

Fiel ao slogan da época de que "um Jeep podia vencer qualquer obstáculo", por que não um oceano?

O primeiro problema veio quando ele tentou comprar um daqueles Jeeps, já que todos haviam sido construídos apenas para o exército dos Estados Unidos.

Carlin começou procurando a própria fábrica, onde levou um sonoro "não".

O fabricante sabia que o veículo tinha sérios problemas estruturais, uma vez que fora projetado às pressas, para atender às necessidades da Guerra.

Além disso, a ideia de cruzar o Atlântico com um automóvel soava absurda demais para ser levada a sério — como, por exemplo, ele faria com a questão do combustível?

Completa loucura

O jipe anfíbio americano era pesado demais, perigosamente instável na água e demasiadamente lento, porque seu motor (o mesmo usado no automóvel convencional) tinha apenas 60 hp de potência.

Atravessar um oceano com aquele veículo, como Carlin queria fazer, era a mais completa loucura.

Ninguém acreditava que aquilo pudesse ser feito. Exceto ele.

O carro mal flutuava

Durante meses, Carlin vasculhou ferros-velhos, em busca de um jipe anfíbio, até que ficou sabendo que haveria de um leilão de sucatas de guerra do exército americano.

Ele foi lá e — bingo! — arrematou um Jeep igual ao que vira anos antes.

Quer dizer, quase igual, porque aquele tinha seríssimos problemas mecânicos.

A transmissão estava travada, o tanque podre, o motor corroído e a ferrugem impregnada por todos os lados.

Mas ele não desistiu: levou o carro para uma oficina-estaleiro e mandou reformar — e reforçar — o carro inteiro.

O serviço ficou bom, mas com uma consequência ruim: por conta dos reforços no chassi, o jipe náutico do australiano ficou tão pesado que mal flutuava.

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Na água, o jipe ficava semiafundado e qualquer marola o enchia o de água. Foi preciso aperfeiçoar o projeto.

Como levar tanta gasolina?

A primeira providência foi instalar uma cabine no jipe, já que ele era conversível — bem como uma frente em forma de proa e um leme.

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O carro ficou parecendo uma caixa de sapatos bicuda, mas deu certo.

Já o segundo problema foi bem mais difícil de resolver: a questão da limitada capacidade do tanque de combustível do veículo — algo fundamental para quem pretendia cruzar um oceano inteiro.

Como resolver isso?

A primeira alternativa foi adaptar um grande tanque de gasolina debaixo do veículo, feito uma quilha no casco de um barco.

Foi um completo desastre.

Quando cheio, o tanque quase fazia o jipe afundar como uma pedra. E, uma vez vazio, o empurrava para cima, feito uma boia.

Impossível navegar daquele jeito.

Veio, então, a segunda ideia: levar um tanque suplementar a reboque, feito uma espécie de comboio náutico.

Primeira tentativa

Apesar de um tanto bizarro, o plano foi posto em prática logo na primeira tentativa (frustrada, por sinal) que Carlin fez de vencer o Atlântico com aquele automóvel anfíbio, em 1948.

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Só que ele não estava mais sozinho no seu audacioso objetivo: tinha, agora, a companhia da esposa, a americana Elinore, com quem se casara pouco antes, e que decidira embarcar com o marido naquela maluquice, como uma espécie de "lua de mel no mar".

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Em 16 de junho de 1948, o casal partiu de Nova York com destino aos Açores, já do outro lado do Atlântico, mas a aventura não foi longe.

Cabine cheia de fumaça

Horas depois, Carlin sentiu que as coisas não iam nada bem com o seu carro-barco. Ele sacudia demais, não mantinha o rumo desejado e era desesperadamente lento na água.

Para completar o drama, a fumaça do motor entrava na cabine e quase sufocava os dois.

Mesmo assim, eles seguiram em frente. Mas não por muito tempo.

Cinco dias depois, desistiram e retornaram. Mas não se consideraram derrotados.

Segunda tentativa

A estripulia chamou a atenção de uma revista de variedades, que pagou um bom dinheiro pela história daquele insensato casal.

Com o dinheiro, Carlin aprimorou o engenho, que ganhou até nome, como um barco de verdade: Half-Safe (algo como "Meio-Seguro"), título brincalhão e com duplo sentido, já que era, também, o slogan de um famoso desodorante da época, que ele tentou, e não conseguiu, ter como patrocinador.

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Dois meses depois, a dupla tentou novamente atravessar o Atlântico, dirigindo o seu jipe híbrido. Mas, de novo, não foi longe.

Ficaram à deriva

Após cerca de 500 quilômetros no mar aberto, quebrou o hélice do carro-barco.

Como não havia peças sobressalentes a bordo, eles ficaram à deriva. Mas, por sorte, foram logo resgatados por um navio que passava.

Foi melhor assim: Carlin já havia concluído que, mesmo com o combustível extra do tal tanque-reboque, não haveria gasolina suficiente para cruzar todo o oceano.

Mas nem assim ele desistiu dos seus planos.

Finalmente conseguiram

O australiano aumentou a capacidade do tanque, criou um sistema equilibrador que compensava, com água do mar, o peso a menos do combustível na medida em que ele ia sendo consumido, e fez mais três tentativas — todas igualmente frustadas.

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Até que, um ano e meio depois, em julho de 1950, ele partiu uma vez mais, ainda com a mulher, de Halifax, na costa do Canadá, e contrariando toda a lógica, conseguiu o seu objetivo.

Cruzou o Atlântico dirigindo um automóvel!

Consertos em alto mar

Mas não foi nada fácil.

Na viagem, o rádio comunicador logo pifou, porque a maresia corroeu os contatos de metal, a comida escassa (por falta de espaço no porta-malas) obrigou a dois a pescar diariamente, para não passarem fome, e o motor passou o tempo todo ameaçando parar de vez, porque não fora feito para passar tantas horas sob o mesmo regime de rotações.

De tempos em tempos, era preciso parar o veículo no meio do mar e desmontar parcialmente o seu motor, a fim de descarbonizá-lo — situações em que Carlin ficava se equilibrando sobre o capô, para não cair na água.

Mas ele não reclamava. Muito menos desistia: haveria de cruzar o Atlântico com o seu veículo anfíbio, nem que fosse a nado, rebocando o próprio jipe.

Mas nem precisou fazer isso

Do outro lado do Atlântico

No 32º dia de travessia, apesar de um problema mecânico ter obrigado o casal a percorrer os quilômetros finais apenas em segunda marcha (sim, aquele "barco" tinha até câmbio!), a Ilha de Flores, nos Açores, surgiu diante do para-brisas do jipe que navegava.

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Na ilha, eles ficaram um bom tempo, aperfeiçoando e consertando o veículo.

Chegaram rodando

Mas o pi­or ainda es­ta­va por vir: na tra­ves­sia entre os Açores e a Ilha da Ma­dei­ra, os dois en­fren­t­aram um fu­ra­cão, que fez a viagem durar o dobro do tempo previsto, e por muito pouco não fo­ram a pi­que.

Depois, a duras penas, avançaram até as Ilhas Ca­ná­rias e Mar­ro­cos, antes de, por fim, tocar o solo europeu — onde desembarcaram rodando, feito um carro convencional.

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Para Carlin, essa era a grande van­ta­gem dos carros anfíbios: quan­do aca­bava a ter­ra firme, eles seguiam em fren­te, pela água. Ou vice-versa.

Ob­je­ti­vo al­can­ça­do? Na­da dis­so!

En­tu­si­as­ma­do com a fa­ça­nha — e satisfeito com a visibilidade que seu feito alcançara na Europa —, Carlin, ago­ra, que­ria mais: que­ria dar a vol­ta ao mun­do com o seu jipe anfíbio.

E foi o que os dois fizeram, em seguida.

Em abril de 1955, o casal colocou em prática a segunda parte do novo plano do australiano.

Partiram de Lon­dres com seu estranho veículo (cuja apa­rên­cia es­ta­pa­fúr­dia in­clu­ía até um mas­tro, para ajudar a avançar na água com a ajuda de uma vela), e, após cru­zarem, navegando, o Ca­nal da Man­cha, segui­ram por terra firme até a Ásia, intercalando a viagem com outros trechos de travessia pela água.

A mulher desistiu

Mas, ao chegarem à Índia, a mulher do australiano, que já vinha reclamando do desconforto há bastante tempo, desistiu de vez — da viagem, do marido e de toda aquela insanidade.

"Aven­tu­ra é uma cois­a; ma­so­quis­mo é ou­tra" - disse, an­tes de aban­do­nar Carlin e vol­tar para os Es­ta­dos Uni­dos, on­de nun­ca mais quis to­car no as­sun­to.

Já o australiano seguiu em frente, após re­cru­tar uma no­va vítima, pa­ra aju­dar no sufoco que era navegar com o Half-Sa­fe no mar.

Carlin, convenceu um com­pa­trio­­ta, chamado Barry Han­ley, a em­bar­car na aventura, mas o novo companheiro só aguentou até o Ja­pão, on­de tam­bém aban­do­nou o bar­co — que, naquelas alturas, de tantas adaptações feitas, mais parecia um carro transfigurado.

Demente a bordo

No Japão, Carlin conseguiu outro tri­pu­lan­te, para a etapa seguinte da viagem: um jo­vem re­pór­ter ame­ri­ca­no chamado La­fa­yet­te De Men­te, cu­jo so­bre­no­me aju­da­va a entender por que acei­ta­ra aque­le con­vi­te pa­ra cru­zar o maior dos oceanos, o Pa­cí­fi­co, com um simples automóvel.

O objetivo da dupla era navegar do Japão aos Estados Unidos, completando assim a volta ao mundo.

Até espionagem russa

Dois meses depois, após uma longa travessia que teve de tudo (de ter­rí­veis tem­pes­ta­des à es­pi­o­na­gem de um submarino rus­so, cuja tripulação não acre­di­ta­va que aque­les dois sujeitos estavam fa­zendo aquela jornada por pura vontade), eles conseguiram: desembarcaram em uma praia do Alasca e foram rodando até Nova York, onde Carlin, finalmente, deu por encerrada a sua jornada, que, há muito, vi­ra­ra mais do que um simples desafio — tornara-se um ob­je­ti­vo de vi­da.

E foi assim, satisfeito, que Ben Carlin morreu, 23 anos depois, na sua cidade natal, na Aus­trá­lia, pa­ra on­de o seu estranho Jeep também foi levado, a fim de ser ex­po­sto no museu da es­co­la onde ele estudou, co­mo uma pro­va de que o que pa­re­ce im­pos­sí­vel, às ve­zes, é ape­nas im­pro­vá­vel.

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Fizeram pior ainda

Embora o feito de Carlin nunca tenha sido repetido, quase meio século depois, no ano de 2000, dois jovens (e igualmente um tanto desmiolados...) italianos, Marco Amoretti, de 24 anos, e Marcolino de Candia, de 21, fizeram algo semelhante — mas, na prática, ainda pior.

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A bordo de dois velhos automóveis convencionais, um Ford Taurus 1981 e um Volkswagen Passat 1987, que sequer eram veículos anfíbios e foram caseiramente adaptados pelo pai de um deles, apenas para flutuar, a dupla também atravessou o Atlântico, praticamente à deriva, movida por velas, em vez de motor, ao longo de quatro meses, em um feito tão impressionante quanto ignorado, já que, na época, poucos ficaram sabendo — clique aqui para conhecer, também, esta outra extraordinária história verídica.

"Meu pai se inspirou em Ben Carlin para criar o seu próprio projeto", diz um dos italianos, Marco Amoretti, que ainda tenta transformar aquela louca travessia em um filme, em homenagem ao pai, que morreu pouco antes que a dupla chegasse do outro lado do Atlântico, com dois também improváveis carros flutuantes.

"Diziam que éramos malucos, mas fizemos o que nos propusemos", diz o italiano, que hoje vive em Gênova e ainda navega com automóveis flutuantes.