OPINIÃO
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O dia em que dei uma carona para Sebastião Salgado
Colunista de Nossa
27/05/2025 05h30
Deixando um pouco de lado a análise da político cultural para prestar uma singela homenagem, contado a história do meu primeiro encontro com um gigante da nossa cultura.
Era 1997 e eu ainda estava cursando a faculdade de Direito na Universidade Mackenzie. Fazia parte de um grupo de política interna chamado Paratodos que ousava desafiar o conservadorismo da instituição através de iniciativas acadêmicas e eventos que pudessem aproximar a universidade e seus alunos da sociedade e dos movimentos sociais.
Foi nesse espírito que conseguimos a façanha de realizar o lançamento do livro "Terra", de Sebastião Salgado, que tinha renda totalmente revertida para o Movimento dos Sem Terra (MST), no grande auditório Rui Barbosa, dentro do Mackenzie.
Eu tinha sido presidente da entidade estudantil no ano anterior, então já não estava tão envolvido com a produção do evento, mas como militante do grupo que ainda comandava o Centro Acadêmico, me ofereci para ajudar de alguma forma. Foi assim que me escalaram para pegar Sebastião Salgado no hotel, na região da Avenida Paulista, e levá-lo até o evento.
Quando parei meu golzinho preto na frente ao hotel, já o vi esperando seu transporte. Ao me apresentar, Salgado, com uma simpatia e simplicidade que me marcaram desde o primeiro momento, perguntou se poderia aproveitar a carona para levar junto dois amigos que colaboraram para o livro e também estavam na cidade para o lançamento. Só precisamos esperar um pouco porque ele tinha marcado na recepção do hotel como ponto de encontro.
Cinco minutos depois, eu, que no auge dos meus 20 anos já estava super emocionado com a tarefa de conduzir o genial fotógrafo, fiquei embasbacado quando percebi que um dos amigos da carona era simplesmente o escritor José Saramago, prêmio Nobel de literatura, e que havia contribuído para o livro com alguns textos.
Com os dois já dentro do carro, ficamos esperando o terceiro amigo, que, já naquela altura ouvindo a conversa, tinha entendido que se tratava de ninguém menos que Chico Buarque de Holanda, que havia também colaborado no livro, com um CD encartado.
Com a naturalidade de quem estava ao volante rezando para que o carro não quebrasse no caminho, fiquei ouvindo Salgado falando sobre Chico com Saramago.
Depois de esperarmos 20 minutos, ele decidiu seguir, concluindo que Chico provavelmente iria direto pro evento.
A partir daí, seguimos o curto caminho entre a Alameda Santos e a Rua Itambé trocando ideias sobre como era inusitado para ele, Salgado, voltar ao Mackenzie tanto tempo depois de ter frequentado o campus, quando era estudante de economia na FEA (Faculdade de Economia e Administração da USP), que, na época, ainda era no centro de São Paulo. Ele disse que não imaginava pisar novamente na universidade depois do período da ditadura militar, especialmente da fatídica batalha da Rua Maria Antonia..
Balançando na malevolência dos amortecedores baqueados do golzinho e dos buracos de São Paulo, Salgado explicou todo o contexto histórico para Saramago e demonstrou felicidade em voltar naquele novo momento, em um evento do MST. Relembrou dos amigos que tinha feito no Mackenzie e dos momentos que tinha passado lá.
Tudo com leveza e tranquilidade misturada com uma linda tolerância de não se preocupar tanto com os estereótipos do passado, mas enfatizar a beleza da mudança e o mérito dos estudantes que tinham construído a parceria com aquele movimento social tão importante.
A multidão era tão grande aguardando a chegada deles que não me lembro direito como os tirei do carro e os levei até a exposição daquelas icônicas fotos — montada pelos estudantes de arquitetura da universidade no saguão do auditório — e depois para o palco do espaço que estava absolutamente lotado.
No inicio de sua saudação, já no palco, Salgado contou um pouco a história que tinha acabado de ser rememorada dentro do carro com Saramago e pediu licença para tirar uma foto da plateia para celebrar aquele momento.
No contraluz das portas de vidro do auditório Rui Barbosa, com 5 mil estudantes gritando com as mãos para cima, Sebastião Salgado sacou sua famosa Leica e fez a foto. Chico chegou logo depois.
Descanse em paz, mestre
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL