Mega corte na verba da Lei Aldir Blanc expõe amadorismo da gestão cultural

Ler resumo da notícia
A aprovação do orçamento do governo federal para 2025 no Congresso Nacional trouxe uma "surpresa desagradável" para o setor cultural: um corte de 84% nos recursos da lei Aldir Blanc. Na prática, o valor previsto de R$ 3 bilhões se transformou em R$ 478 milhões, em uma canetada do relator da Comissão Mista de Orçamento, senador Ângelo Coronel, do PSD da Bahia.
Chega a ser tragicômico que um corte como esse ocorra algumas semanas depois de o Brasil ganhar seu primeiro Oscar e do Ministério da Cultura completar 40 anos. Mas, para além das análises superficiais e das lacrações da atualidade, prefiro dissecar o assunto que, acima de qualquer interpretação, evidencia um amadorismo político e de gestão que há algum tempo afeta a cultura brasileira.
É bom lembrar que a Lei Aldir Blanc foi originalmente criada em caráter emergencial para apoiar os trabalhadores da cultura, seus territórios e espaços culturais que foram brutalmente afetados e tiveram suas atividades interrompidas durante a pandemia. Na lei emergencial foram previstos investimentos anuais desses R$ 3 bilhões até 2027.
Antes desse corte bárbaro no Congresso, a Aldir Blanc já tinha entrado no Pacote Fiscal anunciado pelo Ministério da Fazenda em novembro do ano passado. Pela regra, o valor anual previsto só seria pago se houvesse comprovação de que estados e municípios estivessem utilizando corretamente os recursos, pois muitos desses entes da federação simplesmente não estavam gastando os recursos disponíveis.
Um decreto recente, no entanto, deu uma força para os estados e municípios e determinou que os recursos seriam repassados se fossem comprovados os gastos de pelo menos 60% da verba do ano anterior.
Voltando ao corte, o Ministério da Cultura prontamente anunciou que vai garantir o pagamento da integralidade dos R$ 3 bilhões para o setor cultural por meio da suplementação do pequeno valor liberado no orçamento, ou seja, transferindo mais recursos de outras áreas para atingir o valor anteriormente aprovado.
Isso porque o texto da Lei do Orçamento permite a recomposição orçamentária das chamadas despesas obrigatórias — como é o caso da Aldir Blanc. Mas será que isso vai mesmo acontecer? Infelizmente, quando o cobertor é curto, como no caso da verba pública para cultura, já sabemos que alguém vai passar frio. E mesmo que se reverta usando algumas dessas manobras orçamentárias era necessário mais esse susto?
Na política, chega a ser triste que, diante do debate sobre o Orçamento da União - em que todos os órgãos públicos deveriam estar 100% ligados - não tenha tido um trabalho de prevenção desse corte tão expressivo. E prevenção, nesse caso, só acontece com real articulação dentro do Congresso Nacional, ou seja, com assessoria parlamentar eficiente, horas e horas de dedicação para cafezinhos e despachos com deputados, senadores e assessores.
Além disso, todo mundo sabe que o orçamento é feito por meio de um acordo entre o Congresso e o Governo - vejam os impressionantes R$ 61,7 bilhões previstos para emendas parlamentares. Então, surpresas como esse corte só acontecem para quem não participa do centro das discussões.
Na gestão, o problema recorrente chega a ser autoexplicativo: o próprio governo já conta com a não execução de parte dos recursos que a lei estabelece e projetou utilizar essa certeza de sobra de dinheiro no ajuste fiscal. A mesma lógica de real articulação com dedicação vale também tanto internamente no governo, como na boa coordenação dos órgãos estaduais e municipais que vão garantir a capilaridade da política nacional.
Muitos desses furos na utilização dos recursos são mesmo derivados de alguns desses estados e municípios que não fazem seu papel. Um exemplo disso foi a recente confusão na execução dos recursos em São Paulo. Mas temos uma boa experiência de articulação sendo conduzida pelo Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, que se posicionou sobre esse recente corte e tem atuado de forma importante para a qualificação da política cultural brasileira.
Não podemos tratar esse assunto de forma isolada, uma vez que não existe qualquer possibilidade de atingirmos objetivos realmente relevantes sem que haja um enorme trabalho de estruturação dos mecanismos de articulação política e de gestão cultural em todo país.
Estamos distantes da criação de um real sistema nacional de cultura nos moldes do que é o SUS, como alardeado da regulamentação do "streaming" - prioridade tanto defendida nesse espaço -, da valorização da economia criativa com crédito e desoneração para o setor, da reformulação do ensino técnico profissional para formação da juventude para as novas profissões criativas, e da adaptação das políticas públicas a essa nova subjetividade que se impõe, derivada da revolução tecnológica de tremendo impacto na área. Nada disso se resolve dentro da micro bolha autorreferente em que a gestão cultural se encontra.
O amadorismo na cultura faz com que fiquemos nesse "looping" de "incêndios inesperados" que precisam ser apagados às pressas, sempre dependendo de ajuda de quem entende mais de gestão. É urgente que os agentes públicos saiam dos mundos paralelos criados pelo que já chamei de "sectarismo deslumbrado" e enfrentem os desafios que a vida real e a máquina pública nos impõem.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.